HABILITAÇÃO NA LEI Nº 14.133/21

 HABILITAÇÃO  NA  LEI  Nº 14.133/21

 

Ivan Barbosa Rigolin

(set/23)

  

I – Volta-se ao tema da habilitação  nas licitações, desta vez aquelas regidas pela Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2.021.  Aguarda-se que essa lei entre em vigor exclusivo em 31 de dezembro de 2.023, com a revogação da Lei nº 8.666/93 – aguarda-se, mas ninguém deve apostar nisso.

Falamos outra vez de habilitação porque de tanto que odiamos essa instituição talvez repetindo-a indefinidamente em escritos passemos a tolerar ou até mesmo gostar do tema, na medida em que, diziam os revolucionários russos e também o asqueroso ministro nazista Joseph Goebbels,  uma mentira pronunciada mil vezes se torna uma verdade.

O máximo grau de tolerância que se admite para categorizar aquela etapa das licitações é afirmar  que a habilitação constitui um mal necessário, tal qual os remédios que são venenos aptos a combater o veneno maior que é a doença.

O poder público precisa conhecer quem vai contratar – é o que a unanimidade postulam os teóricos da habilitação, e não sem razão. O que se precisa combater até o fim da vida é o injustificável, ridículo, rebarbativo, prejudicial, primitivo, tosco  e contraproducente exagero nas exigências documentais, o que se revela   tão proveitoso quanto uma gripe espanhola ou um desastre de helicóptero.

Então, o ente público precisa, sim, conhecer quem pretende contratar, ou quem se candidata a ser contratado, porém, por tudo que é sagrado, conhecê-lo  apenas no que for necessário e proveitoso para a Administração, quer por se tratar de requisito legal inafastável  (como por exemplo é a regularidade previdenciária), quer por demonstrável (ou incontornável) conveniência (como é a de se certificar de que o licitante sabe construir a obra que se licita).

Vejamos como a nova lei equaciona  essa matéria.

 

II – A habilitação é matéria para os arts. 62 a 70 da Lei nº 14.133/21.  E aí já começa o exagero ([1]). Não se transcrevem os nove artigos porque a paciência do leitor, do autor e do editor tem limite, e serão apenas reportados os seus dispositivos.

O art. 62 consigna no caput o que todos sabem há mais de meio século: habilitação é o procedimento de aquilatação da capacidade do licitantes, e essa continua tradicionalmente  dividida em quatro naturezas,  que são as mesmas da Lei nº 8.666/93, vale dizer (I) jurídica (em verdade capacidade jurídica, o que é matéria civil e não administrativa); (II) técnica; (III) fiscal, social e trabalhista (numa proveitosa e inteligente unificação), e (IV) econômico-financeira. Até aqui segue  tudo como dantes no quartel de Abrantes.

 

III - O art. 63 expede regras amplas, em geral de boa qualidade mas em maior abundância do que necessário - sobretudo nos parágrafos como sói acontecer nas últimas leis brasileiras, nas quais o legislador vem perdendo o timing e a hora de parar de falar. Parasse nos incisos e o artigo estaria bem servido, e livre de escumalhas.

O inc. I fez bem ao transformar a antiga – bisonha e estúpida – exigência de que o licitante declare, sob penas legais, que cumpre os requisitos de habilitação, transformando essa monumental asneira em mera faculdade do edital, que a exige se o seu autor nada mais tiver a fazer. O licitante pode entender que atende, mas os julgadores do certame podem entender, por isto ou por aquilo, que não atende, mas daí a apenar o licitante de boa-fé não faz sentido.

Recomenda-se então, com ênfase máxima, que jamais algum edital exija aquela sesquipedal e estapafúrdia declaração.

O inc. II consagra a regra – muito inteligente e econômica – de que apenas o vencedor em preço tenha seus documentos de habilitação examinados – salvo quando a hailitação anetcer o julgamento das propostas, o que a cada dia que passa se torna mais raro.

Pelo inc. III, outro bom momento da lei, a prova de regularidade fiscal será exigida apenas em momento posterior ao julgamento das propostas, mesmo que a habilitação tenha ocorrido antes desse julgamento de propostas. 

Já ajudou, mas poderia muito bem a lei ter determinado o mesmo também quanto à regularidade previdenciária e a trabalhista uma vez que essas naturezas são muito similares, e os documentos que comprovam as regularidades têm validade muito curta.

Desse  modo, o licitante pode estar regular quando entrega os envelopes ou faz a proposta, mas pode  ocorrer de logo a seguir  vencerem os documentos,  e ele então precisará obter outro documento comprobatório, dentro da validade. Se o governo é tão implacável no controle da sua receita, então não vitime o licitante com a demora nos procedimentos das licitações – em geral lentíssimos, procedidos em ritmo devagar quase parando.

É incmpatível um documento fiscal de validade mensal em licitações que andam devagar quase parando – daí a providência deste inc. III, que poderia ser mais amplo, repete-se.

O inc. IV é uma bobagem que somente consegue atestar a falência da fiscalização trabalhista nas empresas: não é a fiscalização que atesta que o licitante cumpe a regra de reserva de vagas para deficientes, mas o próprio mlicitante, que deve declarar que a cumpre – ou será inabilitado.

Grande bobagem legal, porque o empresário precisa cumprir aquelas regras dentro e fora de licitações, e se menitr na licitação declarando que as cumpre – quando sabe que não cumpre – o risco de ser desmascarado, salvo em caso de denúncias, é infinitamente baixo, transformando na prática o aparente rigor da lei em circo de marionetes, encenação para inglês ver em nosso país de faz-de-conta.  Afinal, o teatro é uma bela artte.

Agora os parágrafos deste art. 63. São quatro, os quais, juntados em plexo unitário, não fazem a menor falta, e são daqueles dispositivos que se lêem uma vez na vida, e jamais novamente, tão acachapante é a sua inutilidade.

Pelo § 1º o edital deve exigir que os licitanes declarem ter incluído em suas propostas econômicas os custos trabalhistas – como se pudessem não os incluir.

O § 2º faculta ao edital o que ele sempre pôde fazer: exigir visita técncia quano o ente licitador julgar imprescindível.

O § 3º permite ao edital o que também sempre lhe foi permitido: que o licitante substitua a visita por uma declaração de que conhece o palco de execução do futuro contrato.

O § 4º, mais fora de contexto que seus antecedentes, fixa que o ente licitador deerá marcar horários individuais e diferentes entre si para as visitas.  Impressionante !..

 

IV – O art. 64 traz outras regras operacionais para o processamento da habilitação.  São na maioria providências óbvias, ou ao menos imprescindíveis, e que se não estivessem previstas em lei provavelmente seriam praticadas do mesmo modo, mesmo sem lei, porque traduzem necessidades lógicas ou institucionais evidentes.

O que se observa é que, quanto a este art. 64  e o seguinte 65, dando-se conta de que não tinha o que dizer, o legislador desdobrou regras anteriores, ou plasmou na lei regras ainda não escritas mas que já vinham sendo observadas em face do comando necessário que contêm, pelos entes licitadores. Desse modo resultam quase patéticos os arts. 64 e 65 da lei, puro preebchimento de embutido suíno por sobre o aplicador, que já tem tantos problemas reais com quê lidar no dia-a-dia.

O caput do art. 64 proíbe  substituição de documentos constantes do envelope já entregue ao ente licitador, a não ser para atualização de documentos com validade vencida (inc. II) ou então, signifique isso o que significar (I), para complementar informaçlões acerca dos documentos apresentados, desde que necessária para apurar fatos existentes à épocada abertura.

Esse inc. I parece revelar alguma doença mental, ainda que leve e tratável, do legislador. Não fecha nada com coisa nenhuma, não diz lé com cré e por certo terá nos certames toda a atenção que merece: nenhuma.

O § 1º deve ter sido escrito por quem não leu o início da lei, porque menciona a comissão de licitação, quando a lei institui a comissão de contratação (art. 6º, inc. L) e o agente de contratação (art. 6º, inc. LX), sem nunca mencionar qualquer comissao de licitação. O legislador está perdido em seu trabalho, andando em círculos.

Seja como for, e seja qual for o julgador da licitação, pode ele, como aliás sempre pôde, considerar o documento apresentado como atendendo o edital, em face de enganos ou equívocos operacionais do licitante, que, por exemplo, juntou folhas em seqüência errada, como fls. 1,3, 2, 4, 5, hipótese essa em que fica evidente a sua boa-fé.

Fique muito claro: a comissão não “san” erros alterando documentos ap´resentados, porque se neles impuser alteração escrita isso será considerado adulteração; em vez disso, constatando a boa-fé do licitante, informa em ata que considera assim o que por equívoco mecâncio foi apresentado assado, e nada mais faz que isso. Faz com a nova lei, como já fazia com a antiga, e com a anterior a essa.  Não é precisa lei nenhuma para autorizar a autoridade.

O § 2º repete regra da Lei nº 8.666/93, e que mesmo nessa lei já era de uma obviedade jurídica absoluta e não precisava ter existido.

Após a habilitação não se exclui licitante por inabilitação; poderia ser diferente ?   Pode acontecer de por exemplo se demonstrar que a habilitaçãode alguém se baseou em documento falso, mas nesse caso se anula a habilitação, o que formalmente é bem diferente de inabilitar, ainda que o efeito seja o mesmo.

 

V - O art. 65 é outra pedra na sopa, com a qual ou sem a qual a sopa restaria rigorosamente a mesma. De conveniente tem o fato de ser curto.

Informa no caput que as condições de habilitação serão definidas no edital (!!)

O § 1º plasma na lei o que sempre se vem anunciando por todos os meios: empersas criadas no mesmo exercício da licitação de que participam, e que portanto ainda não fecharam nenhum balanço anual,  podem valer-se do balanço de abertura, que (I) também é balanço oficial, (II) não é provisório e (III) é sempre favorável, espelhando conta em azul e não em vermelho-sangue.

Fecha o curto artigo o § 2º, que autoriza a habilitação eletrônica e à distância, desde que para tanto o ente cumpra um regulamento que pela lei precisa existir. 

O regulamento é local ou mesmo setorial dentro da mesma entidade, porque não se concebe uma normatização nacional desse tema que é amplamente variável em nosso país de área quase continental,  e que  de resto e em tudo é heterogêneo a mais não poder.

A eficácia desse § 2º, portanto, está contida até a edição de regulamento local que lhe dê os parâmetros de exequibilidade.

 

VI – O art. 66 ingressa por fim na especificação das demonstrações que a habilitação pode exigir, conforme a sua natureza.

Este é um artigo exemplar !

Contém 4 (quatro) linhas numa edição de composição corriqueira, num sintetismo e uma concisa objetividade raros não apenas nesta mas em qualquer lei brasileira.

Manteve a tradição de denominar habilitação jurídica ao que o direito civil denomina capacidade civil, como se lê dos arts. 1º e 2º do Código Civil para as pessoas naturais, e a partir do art. 40  para as pessoas jurídicas,  destacando-se o art. 45.

De tão lapidar é o seu comando que merece transcrição:

Art. 66. A habilitação jurídica visa a demonstrar a capacidade de o licitante exercer direitos e assumir obrigações, e a documentação a ser apresentada por ele limita-se à comprovação de existência jurídica da pessoa e, quando cabível, de autorização para o exercício da atividade a ser contratada.

O dispositivo desse modo liberou o edital para exigir dos licitantes, pessoas naturais ou jurídicas, apenas a prova de  existência civil e de desimpedimento para a prática de atos negociais, sem descrever ou apontar que documentos são esses.

O artigo menciona apenas a pessoa jurídica porém o seu comando é inequivocamente aplicável também à pessoa física, e nesses termos bastará ao ente licitador obter o RG (ou documento equivalente) da pessoa natural ou o CNPJ da pessoa jurídica para precisar considerar essa pessoa juridicamente habilitada, ou capacitada, para prosseguir na licitação.

A lei admite ainda que nos casos em que seja necessário ao concorrente demonstrar que está autorizado a exercer sua atividade o edital exija tal demonstração, o que é absolutamente razoável, ou mesmo necessário.

 

VII – O art. 67 transita do paraíso da concisão para o inferno da prolixidade.

São agora seis incisos e doze parágrafos, um deles com dois incisos. Os cabelos do autor do edital neste momento  arrepiam-se de chofre, mas ele não deve desanimar porque decerto terá passado por situações ainda mais constrangedoras na sua existência.

O tema é a qualificação técnico-profissional e a qualificação técnico-operacional dos licitantes, em seu conjunto a comporem a habilitação técnica a que se refere o inc. II do art. 62. É importantíssima essa qualificação, diferentemente de muitas outras que a lei permite ao edital exigir nas habilitações.

A primeira daquelas duas significa a qualificação do profissional, pessoa natural, ou pessoa física no dizer do imposto de renda,  para se responsabilizar pelo trabalho, e a segunda quer dizer a qualificação da empresa licitante,  atestada por certificados de trabalhos similares que realizou, públicos ou privados.

Para nós a segunda, operacional, é e sempre foi mais importante que a primeira, relativa ao profissional. Com efeito quem prestou o serviço, ou construiu a obra, foi  a empresa e não o profissional.

Sem um profissional responsável inviabiliza-se qualquer  trabalho, porém o profissional pode, por exemplo,  morrer, ou mudar-se para a Tanzânia sem deixar traço, ou desligar-se da contratada, e nem por isso a empresa deixará  de prestar o serviço, obtendo outro profissional igual ou suficientemente qualificado, que o contratante aprove.

 

VIII – Para atender a primeira, técnico-profissional (art. 67, inc. I) o edital não pode exigir mais do que a indicação, pelo licitante, de um profissional habilitado na área do objeto da licitação sempre que isso for exigência da legislação disciplinadora dessa profissão. Não se exige engenheiro para contrato de pintura, ou de limpeza, porque a lei da engenharia não elenca a responsabilidade por esses serviços como privativa de engenheiro.

Pode ser que o objeto em licitação seja particularmente exigidor da atestação de que o profissional tenha sido responsável por certos trabalhos, como demonstração de sua capacidade técnica. Nesse caso entram em cena os §§ 1º a 5º deste art. 67,  que em resumo preveem:

- §§ 1º e 2º  -   as exigências dos atestados não podem ultrapassar  50 % do valor de cada parcela de custo igual ou maior que 4 %  do valor estimado pela Administração para a contratação.  Se atingir esse valor essa parcela é considerada de “maior relevância” dentro do projeto – qualificação essa que não serve para absolutamente nada quando se evidencia que a lei só está preocupada com o valor da parcela.

Até esse ponto a lei entende que quem realizou ao menos metade de todas as  ‘parcelas relevantes’ do  projeto – ou sejam as que custam, cada qual, pelo menos 4 % do valor total do objeto – sabe executar todo o projeto, e proíbe exigir mais que isso para evitar direcionamentos do edital a grandes empresas, detentoras de atestados das maiores obras e dos maiores serviços;

- o § 3º desfaz o aparente rigor dos anteriores, ao permitir a substituição de atestados de  desempenho anterior por outros meios de comprovação de capacidade tanto profissional quanto operacional dos licitantes.

Correto, sobretudo para empresas novas, ainda sem currículo de grandes realizações mas que eventualmente já nascem grandes, como aquelas integrantes de grandes grupos empresariais detentores dos mais variados e amplos atestados.

O que não desce pela garganta, neste  § 3º, é a previsão de que essas demonstrações alternativas aos atestados devem obedecer a regulamento. Ora, é muita interferência do legislador nacional na vida de Estados e Municípios, que somente terão os regulamentos que julgarem indispensáveis, sem necessidade de que mamãe-União lhes ensine a fazê-lo, ou lhes diga o de que precisam;

- o § 4º admite atestados estrangeiros traduzidos para o português, salvo se demonstrada oficialmente,  ou publicamente conhecida,  a inidoneidade da empresa detentora, hipótese em que não serão aceitos, e inabilitada a empresa respectiva;

- pelo § 5º nas licitações para serviços contínuos pode o edital exigir comprovação de que o licitante já tenha prestado serviços similares, interrupta ou ininterruptamente, limitado o período total exigível a três anos, que podem  se situar em qualquer época. 

Afigura-se-nos exagerado o triênio nesse caso, e a nosso ver favorece direcionamentos do edital, mas o pior é o seguinte: quem ainda não prestou serviços contínuos, então esse não sabe prestá-los, por mais gigantesca que seja  sua estrutura operacional ?     É  francamente ruim, por discriminatório,  o parágrafo.

 

IX – Antes de prosseguir no exame dos parágrafos restantes (§§ 6º a 12º) volta-se ao exame dos incs. III a VI deste art. 67, que não foram vistos por causa da integração dos incs. I e II com os §§ 1º a 5º.

O inc. III deste art. 67 permite ao edital exigir indicação do pessoal técnico, de instalações e aparelhamento do licitante. Em geral tudo isso é de uma inutilidade monumental, porém ocasionalmente pode se revelar útil para objetos cuja especificidade ou complexidade exijam essas informações, oportunidade em que o edital as poderá exigir – e podendo não as exigir estará contribuindo com a simplicidade da vida.

O inc. IV permite ao edital exigir  prova de atendimento de requisitos previstos em legislação específica relativa ao objeto. Não precisaria haver essa autorização, porque se legislação específica os exige, então não se precisa de que a lei de licitações autorize exigir o que outra lei exige. Compreende-se: o legislador precisa ter o quê fazer.

O inc. V permite ao edital exigir registro ou inscrição – do profissional e/ou da empresa, porque a lei não informa – na entidade profissional competente, o que será inteligentemente atendido se o edital informar que entidade é essa,  ou de outro modo o ente licitador precisará aceitar qualquer registro em qualquer entidade existente cujo objeto  guarde alguma relação com o objeto do certame.  Outra falta do quê fazer, na maioria dos casos.

O absolutamente estúpido e despropositado inc. VI permite ao edital exigir que o licitante declare que tomou conhecimento das informações do edital.  Poderia ser diferente ? Poderia algum licitante esquivar-se de cumprir requisitos do edital alegando que não leu o instrumento convocatório ?  Trata-se aqui de algo como vadiagem legislativa ([2]).

O legislador amplia, a cada nova lei, as asneiras de morder a nuca da lei correlata anterior. O fiscal precisa ter juízo por si e pelo autor da lei, de quem pouco se pode esperar.

 

X - Retomam-se os parágrafos, a partir do § 6º deste art. 67.

O § 6º, mantendo a correta regra da Lei nº 8.666/93, fixa que os profissionais indicados na licitação devem participar da execução do contrato, podendo ser substituídos somente se com a anuência da Administração.

Natural que assim seja, porque não faz sentido o proponente anunciar o maior profissional existente para vencer a licitação, e depois, na execução do contrato, substituí-lo por alguém desconhecido e inexperiente.

O § 7º, outro membro da família dos dispositivos desocupados, informa que para que empresas estrangeiras cumpram o requisito do registro do profissional que indique na entidade profissional respectiva poderá, quando da assinatura do contrato, exibir o requerimento daquele registro.

É portanto mais rigorosa a lei para o licitante nacional do que para o estrangeiro, uma vez que o ente contratante, até esse momento da contratação, não sabe se o registro será ou não deferido. O legislador parece atordoado.

O § 8º deve ser o pior de todos, e não é original desta nova lei, mas da Lei nº 8.666/93.

Permite – e não exige – que o edital exija a relação dos compromissos de cada proponente, e não se faz a  menor de ideia de para quê.  Então vejamos: o edital exige, e o proponente apresenta a lista dos seus compromissos assumidos.

Ante essa lista, que faz o licitador ?  Como analisar esses compromissos ante o contrato em vias de ser assinado ? Como analisar, se a lei não dá nenhum parâmetro para isso ?  Que significa para o ente que licita a lista dos contratos já firmados pela empresa vencedora desta presente licitação ?  Ninguém responde.

Jamais o faríamos, mas um comentador mais agreste lançaria a pergunta sobre onde deveria ser enfiada  aquela referida lista. Nós entretanto em hipótese alguma lançaríamos um tal questionamento, como jamais passaria pela nossa cabeça exercer esse direito do § 8º, mera faculdade e não obrigação do edital.

 

XI – O § 9º dá inquietante sinal sobre a higidez mental do legislador. Jamais passaria pela ideia de alguma autoridade mentalmente íntegra  sequer permitir que o edital exija demonstrações de, qualificação técnica relativa a potencial subcontratado.

Como jamais deve algum edital no Brasil dar-se a esse esotérico e surreal expediente. O único correto no dispositivo é que constitui  mera faculdade e não imposição nenhuma.

O § 10 é outro suplício que nem Torquemada conceberia. Fica-se a imaginar o tempo que o legislador utilizou para escrever douradas inutilidades como esta, porque foi o lapso mais mal  utilizado em sua vida. Pergunta-se: o país precisa de um gatafunho como este ?  Que espécie de serviço o legislador imagina que esteja prestando  ao país ?

Apelamos ao comentário tecido em nosso livro:

O § 10 é outra tortura medieval. O ente licitador administraria muito melhor  as situações em que a hipótese relatada acontecesse se não existisse este parágrafo, que não existe na L 8666.

Atestado de desempenho anterior emitido em favor de consórcio do qual o atual licitante participou, ou indica a atividade desempenhada por esse licitante, ou   entra o critério dos incs. I e II,  quais sejam, se o consórcio foi homogêneo (todos os consorciados desempenhando a mesma função) vale o quantitativo prestado por cada empresa, salvo em trabalho intelectual no qual todas são iguais para este efeito (inc. I).

Se por outro lado o consórcio foi heterogêneo então vale o campo de atuação de cada consorciado, inclusive para serviços intelectuais (inc. II).

O horroroso  parágrafo não indica com objetividade como cada um desses fatores será avaliado, e o parágrafo inteiro é uma catástrofe jurídica, a merecer raspagem com estilete da lei – a qual de resto e  só em si já não constitui nenhum primor. ([3])

O  § 11 manda o licitante juntar cópia do instrumento de consórcio para demonstrar sua participação na execução do objeto a que se refira a certidão, caso dela não conste esse percentual.

E o § 12 declara inaceitáveis ARTs em nome de profissionais declarados inidôneos ou suspensos do direito de licitar e contratar – porém tudo isso, acredite-se, ‘na forma de regulamento’. A eficácia da ordem dessa maneira está contida até que o ente local edite um regulamento, valendo dizer que  enquanto  não o editar não vale o dispositivo ...  assim se o deve ler.

Nada mais infantil: a regra está correta sem regulamento nenhum, e nem precisava estar escrita em destaque porque quem foi declarado inidôneo ou teve suspenso o direito de ser contratado já está ipso facto impedido de ser contratado, bastando que o ente licitador tenha conhecimento da punição aplicada.

Que papel teria então o regulamento: dizer que quem não pode contratar está impedido de contratar ? 

 

XII – O art. 68, sintético e plasmado na Lei nº 8.666/93, tem seis curtos incisos e dois parágrafos, a dispor sobre matéria já conhecida e praticada há décadas.  Sintetizou e reuniu a matéria fiscal, trabalhista e previdenciária (social), no que fez muito bem por seguir a unificação dos sistemas federais de arrecadação.

A habilitação fiscal, social e trabalhista se demonstra por:

a) inscrição no CPF, pessoa natural, ou no CNPJ, pessoa jurídica;
b) inscrição no cadastro estadual ou municipal de contribuintes, respectivamente, do ICMS e do ISS;
c) prova de regularidade com a fazenda federal, estadual ou municipal, conforme seja o âmbito da licitação respectiva;
d) prova de regularidade junto ao FGTS e à seguridade social (INSS);
e) prova de regularidade junto à Justiça do Trabalho, e
f) prova de cumprimento das regras de proteção ao trabalho do menor (CF, art. 7º, inc. XXXIII).

Os dois parágrafos que seguem auxiliam na explicação dos incisos:

§ 1º - os documentos até aqui referidos poderão ser substituídos por outros meios de prova da regularidade do licitante, inclusive por meio eletrônico;

§ 2º - a prova de regularidade junto à fazenda, à seguridade social e FGTS, e à Justiça do Trabalho, se dá na forma da legislação específica.

Parece que o legislador acordou de sua letargia e colocou o cérebro a funcionar !  Francamente, nem parece o mesmo autor do art. 67 ...

Estas regras são excelentes, porque sem as especificar individualmente resumem amplas e genéricas possibilidades, rigorosamente dentro do direito e em favor dos licitantes, de os mesmos licitantes  demonstrarem o quanto exigido no edital.

Ao invés de criar regras e exceções, e a seguir  limitar direitos e abrir exceções às limitações, em tudo se esquecendo de metade das possibilidades, este artigo abriu ensanchas ao exercício do melhor direito do licitante no afã de demonstrar suas diversas regularidades tributárias e sociais.

O que a lei não disse – mas é o que acontece – é que as diversas regularidades podem ser demonstradas por todos os meios admitidos em direito, e isso diz muito mais que um interminável elenco de lembretes e de limitações.

Exemplificando: um embargo à execução interposto por algum executado do INSS, ou do FGTS, o qual contesta o débito apontado pela seguridade, é prova de regularidade até o julgamento final desse processo, e precisa ser aceito como prova de regularidade até aquele evento, quando será confirmada ou anulada, e nesse  último caso se desfazem os efeitos da habilitação havida.

Guias de recolhimento ao INSS ou à receita, mesmo que não confirmadas por certidões oficiais de regularidade – o que pode ocorrer por exemplo em greves dos servidores do INSS ou da receita como já aconteceram em passado não muito distante -  valem como prova, ao menos no momento da habilitação.

Excelente o trabalho do legislador neste art. 68.

XIII – O art. 69 – bem melhor que o seu equivalente da Lei nº 8.666/93 - diz respeito à habilitação econômico-financeira do licitante, que outra coisa não significa senão a sua capacidade de mobilizar-se e arcar com todos os custos do início da execução contratual até que comece a receber os pagamentos, ou o pagamento integral se de curta duração o pacto.

Não pode portanto ser muito extensa a documentação exigível se o propósito dessa habilitação é apenas este,  e a lei corretamente não se estende quanto a isso, e limita os documentos a apenas dois: balanço patrimonial e demonstração da inexistência de falência.

Pelo inc. I podem ser exigidos balanços e demonstrações contábeis de até dois exercícios –  naturalmente se estas forem necessárias além dos balanços. A lei não informa como serão avaliados e julgados suficientes ou não para indicar boa situação do licitante, mas os contadores utilizam são fórmulas tradicionais de análise de balanço, para a final atestarem a qualificação da empresa.

E mesmo assim existe subjetividade nesse julgamento, porque a lei não oferece o mínimo parâmetro de aceitabilidade dos resultados – o que a leigos parece indicar que qualquer resultado positivo atesta afirmativamente, e resultado negativo atesta negativamente, e inabilita o licitante.

O inc. II fala em certidão negativa de falência, porém, se existir  outro documento oficial que ateste o mesmo, sem dúvida poderá ser utilizado com a mesma eficácia.

O § 1º parece indicar que o ente licitador pode não saber analisar os balanços apresentados para o ente saber se atendem aos índices econômicos pedidos, e por isso autoriza que o edital exija declaração de profissional habilitado que o declare. Lembra neste ponto o feiticeiro que desencadeia forças infernais e depois não as sabe controlar ...

O § 2º corretamente proíbe exigir quaisquer índices de lucratividade e rentabilidade, assim como faturamento anterior mínimo – e tudo isso proíbe para evitar ou dificultar direcionamentos do edital.

O § 3º contém a mesma asneira do § 8º do art. 67, e mais uma vez recorda anedotas populares como a do burro que por toda a vida correu atrás de uma cenoura, e quando um dia a apreendeu percebeu que não sabia o que fazer com aquilo. Ou então recorda o turista que aprendeu a fazer a pergunta na língua do país que visitava, mas se decepcionou profundamente a seguir porque a resposta veio na mesma língua, que ele desconhecida ...

O § 4º admite exigir prova de capital mínimo, ou patrimônio líquido mínimo, limitado a 10 % (dez por cento) do orçamento da Administração, anexo ao edital.

Em geral é uma exigência absolutamente imprestável para o que quer que seja, na medida em que se o contratado, ainda que pequeno, tiver vergonha na cara, será inútil, e se não tiver, mesmo que se trate da maior empresa do mundo também de nada servirá, porque todos são honestos - até deixarem de ser. Pura perda de tempo e burocratismo desprezível.

O § 5º proíbe exigir índices raros, incomuns ou não-corriqueiros, lição herdada da Lei nº 8.666/93 e bastante útil contra o edital de cartas marcadas. Os índices, se exigidos, hão de ser os usuais e tradicionais do mercado e das finanças. Um só exemplo tradicional: liquidez corrente maior ou igual a 1 (um): menor que isso é tido como insignificante, e maior como discriminatório.

O § 6º, fechando o artigo, complementa o inc. I informando que se a empresa tiver sido constituída no mesmo exercício em que se dá a licitação apenas um balanço lhe pode ser exigido – e pela lei, em momento anterior, esse documento pode ser o balanço de abertura, que é sempre azul como o firmamento infinito e não vermelho como, de vergonha, a fauce dos torcedores de alguns esquadrões futebolísticos.

 

XIV – Chega-se, não sem alívio,  ao último artigo da habilitação, o art. 70, também sintético e que em boa parte inventa a roda.

O inc. I informa que a documentação oferecida pelo licitante pode ser a original, ou cópia, ou qualquer coisa que a Administração aceite – aproximadamente como o cliente da cerveja, mencionado em rodapé neste artigo.  Então, se vale tudo que o ente licitador aceite, para quê esta previsão ?

O inc. II permite que os documentos que já estejam em cadastro do próprio ente ou de outro ente público, que seja mencionado genérica ou especificamente no edital, substituam quaisquer documentos exigidos. Regra inteligente e que também consta da Lei nº 8.666/93, valoriza e distingue o cadastro público de fornecedores.

O inc. III, inspirado na Lei nª 8.666/93, mantém a mesma grosseria daquele texto, porque dispensa toda documentação habilitatória em contratações para entrega imediata e integral do objeto de valor até um quarto daquele limite para dispensa de licitação – e deixamos de mencioná-lo em face da sua mutabilidade permanente - ou em compras de produto para pesquisa e desenvolvimento até trezentos mil reais.

Comentários:

a) a lei parece olvidar-se de que inúmeros documentos na habilitação são apenas facultativamente exigíveis, de modo que  a inexigibilidade documental já vem de antes na própria lei, e aqui a lei dispensa o que já tinha dispensado antes;

b) acaso existirá algum conceito mais impreciso, indefinido e subjetivo que o de ‘produtos para o desenvolvimento’ ?  Direta ou indiretamente, será que algum coisa que o poder público compre deixa de ser para o desenvolvimento ? Compra para se divertir, ou para matar tempo ?

O parágrafo único fecha o artigo, informando que empresas estrangeiras que funcionem no Brasil apresentarão ‘documentos equivalentes’, na forma de regulamento federal.

Nesta hora o regulamento é muito bem-vindo, porque resolverá na marra, ou manu militari  como se costuma dizer, a questão da evidente inequivalência entre a documentação habilitatória brasileira, que como jabuticaba só existe no Brasil, e aquela, próxima ou remotamente similar,  estrangeira.

O regulamento, então, qual marreta jurídica, ‘igualará o desigual’ em nome da maior e mais desejável amplidão da competição, incluindo-se licitantes nacionais e estrangeiros, nas licitações brasileiras.

 

 

[1] O Decreto-lei nº 2.300, de 21/11/86, que unificou e sistematizou a legislação licitatória do Brasil, tinha apenas 1 (um) artigo, o art. 25, disciplinando as habilitações nas licitações federais.  Seguiu-o a Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1.993, que continha os arts. 27 a 32, ou sejam 6 (seis) artigos, para contemplar o tema das habilitações.  A Lei nº 14.133/21 contém os arts. 62 a 70, portanto 9 (nove) artigos, para cuidar do assunto.  O mau gosto do legislador – porque requintar as exigências e as dificuldades de habilitação é o suprassumo do mau gosto - só experimentou crescimento, e o panorama habilitatório, sob o manto falso de moralidade,  não cessa de se degradar, como se se devesse gostar mais da doença do que da sanidade. O legislador parece fazer de tudo para eliminar, afastar e desencorajar licitantes, e não para encorajá-los a concorrer a contratos públicos.

[2] E quando se escoiceia a lei,  como aqui e como é do feitio deste humilde escriba, não se está com isso atribuindo necessariamente a péssima qualidade dos dispositivos ao autor desta Lei nº 14.133/21, porque grande parte das alegres gratuidades desta lei é mera cópia das gratuidades devidas ao alegre autor da Lei nº 8.666/93. Como neste momento. O que nunca  entra pela garganta é a falta de conhecimento ou de juízo crítico de cada novo legislador, que não se apercebe das asneiras que perpetua – por mais que a doutrina sobre isso insista.  

[3] Lei nº 14.133/2021 comentada - uma visão crítica, Ed. Forum, MG, 2.022, p. 231.