LICITAÇÃO: DETALHISMO OU SIMPLIFICAÇÃO?

LICITAÇÃO:  DETALHISMO OU SIMPLIFICAÇÃO?

 

Ivan Barbosa Rigolin

(out/23) 

 

I – Como pausa ou trégua dentro do sistemático massacre técnico que a Lei nº 14.133/21 vem sofrendo, pontual e globalmente,  no comentário generalizado das pessoas vinculadas às licitações e na doutrina predominante – ainda tímida entretanto, e mais cavalheiresca do que deveria ser ante momento tão sério para a Administração pública -, este é um artigo refrescante. Um convite à reflexão  administrativa nesta encruzilhada.

Entre a  selva escura e tenebrosa da Lei nº 14.133/21 e, perto dela, a relativa simplicidade da Lei nº 8.666/93 o agente  público incumbido  de elaborar o edital para que se licite algum objeto, poderá vivenciar duas situações aparentemente extremas, cada qual no seu polo: ou seguir o detalhismo  explícito da nova lei ou quedar-se, até onde possa, na singeleza  da antiga.

Por impulso natural haverá de optar por uma delas,  sabendo-se que há quem prefira a complexidade à singeleza.

Como se sabe a lei  ‘antiga’  ainda vigora e rege a imensa maioria das licitações havidas no Brasil, enquanto que a nova lei será a única em vigor se de fato a ‘antiga’ for revogada em final de dezembro de 2.023, como se anuncia na legislação.

Como na primeira tentativa legislativa aquela preconizada  troca de lei  deu com os burros n’água com a prorrogação da vigência da Lei nº 8.666/93 até o fim deste ano, então todos mantêm o sifonáptero instado no retropavilhão auditivo, ou, em outras palavras,  a pulga atrás da orelha ([1]),  só restando aguardar o pacote do amanhã, que pode surpreender drasticamente.

 

II – Supondo-se que em 2.024 esteja definitivamente revogada a Lei nº 8.666/93, então só restará ao licitador aplicar a nova lei, e nesse momento será importante definir uma política de vida:  entrar sic et simpliciter na complicação inteira da nova lei, toda ela sem acomodações nem seleções de comportamento, ou, pelo oposto, simplificar na aplicação tudo o que for possível, cortando toda a  gordura que empesteia a lei -  sem entretanto descumpri-la.

Já escrevemos artigos alertando para o imenso número de regras facultativas  da nova lei, aquelas de cumprimento não-obrigatório mas discricionário pela autoridade, aquelas mesmas que fazem tanta falta quanto a pedra na sopa, a seca na amazônia, uma broncopneumonia tripla, um choque de tratores ou a inflação argentina.

Não só nada daquilo rebarbativo, que a lei permite exigir mas não obriga, faz nenhuma falta a ninguém e a instituição nenhuma,  como a sua ausência é um grande favor que alguém estará  prestando à inteligência humana, à racionalidade de qualquer serviço, à regra da eficiência que a Constituição demanda da Administração pública e ao dever de boa administração  que está ínsito nas atribuições de toda autoridade pública.

A lei para Carlos Maximiliano precisa ser interpretada e aplicada com inteligência, e, pensamos,  não com automatismo de robô incapaz de discernir o necessário e útil do desnecessário e inútil.

 

III – Muitas autoridades e muitos agentes das licitações tentam cumprir a lei em todas as suas minúcias e detalhes, sejam obrigatórios, sejam meramente facultativos.

Se o fazem por convicção pouco há a recriminar, porque gosto não se discute, mas apenas se lamenta.

Se algum agente – dentro do que entende ser sua convicção - é funcionalmente tão cego a ponto de não se dar conta de que uma ampla margem de previsões da nova lei é mera recomendação, sugestão, faculdade, possibilidade, encaminhamento, indicação...  então quanto inútil prejuízo ensejará a todos que o cercam, e que dele dependem.  Mas se inobstante tudo isso esse agente tiver convicção do que faz, não se o pode condenar.

O que não se perdoa, hoje nem nunca, é executar a lei com toda a toda  a literalidade que seja materialmente exeqüível,  por preguiça de pensar nos assuntos que a lei veicula, e nas consequências de um cumprimento adaptado à lógica.

Pensar, sabe-se, dá trabalho, algo que suscita rematado ódio a milhões de funcionários, trabalhadores, agentes públicos e mandatários.

Não se dá conta alguém assim que se pensar seriamente hoje evitará precisar repetir todo esforço mental por toda a sua vida, a cada novo trabalho a executar, a cada licitação a impusionar, a cada novo edital a conceber.

Aquele que apenas copia exigências de documentos de habilitação, corretamente  exigidos numa grande obra, mas anacrônicos e inexplicáveis num edital para compras que não demandam nada daquilo, ou para serviços simples, banais e corriqueiros, que muito pouco exigem;  aquele que jamais cogita adaptar os modelos de edital que copia há décadas e que por sua vez são fruto de cópias que seus antecessores também realizavam de modelos ainda anteriores, esse pernicioso funcionário não imagina a imensidão do prejuízo que enseja a toda a sua coletividade. Não à toa se afirma que a preguiça é o mais fulminanete dos pecados mortais ...

Esse agente como os há aos milhares, antes de tudo, é um indolente preguiçoso que, ao fim e ao cabo,  envergonha o serviço público.

E não é inteligente, porque se deixar de lado momentaneamente a preguiça e se der o trabalho de selecionar o que da lei precisa passar para o edital – deixando a escória de fora -, então irá trabalhar com material muito mais enxuto, racional, transparente e compreensível por todos os interessados.

E concluirá seu trabalho muito mais rapidamente, e pela economia de previsões evitará grande parte de impugnações, recursos e incorformismos pelo seu público. E o resultado de tudo isso com toda segurança será bastante melhor que o do complicacionismo injustificável.

 

IV – Com todo efeito é bem mais árduo resumir que estender;  selecionar que copiar modelos;  individualizar do que generalizar;  separar o inútil do que é de fato necessário.

Pode ser mais seguro ao autor do edital copiar fielmente a lei, sem questionar  nem a obrigatoriedade daquilo tudo que transcreve para o edital, nem a sua real utilidade.

Segurança é sempre boa e necessária, porém excesso de segurança  é medida operacionalmente deletéria e imobilizante, e gera um edital pesado como um trem enferrujado -  precisamente  como a matriz de tudo, a Lei nº 14.133/21,  ela própria o é. 

Se existir terror legal é disso que falamos, e é esse efeito que o copiador desta nova lei conseguirá graças à sua lombeira e seu comodismo,  juntos à sua insegurança e  ao seu temor antecipado ao desconhecido - apenas por ser novo.

Quem, agente público, não tiver conteúdo pessoal e interno, adquirido ao longo dos anos de ofício e suficiente para decifrar aos poucos mas decididamente os novos ordenamentos jurídicos que sempre surgem, melhor que não elabore, oriente ou conduza licitações.

Quem não consegue ter nem formar opinião sobre as frequentes novidades no cenário técnico mas prefere, ao invés,  engrossar o rebanho dos indolentes e/ou acovardados que somente trabalham na parte mais segura das seguras e com isso arrastam o seu ente público a danos financeiros, temporais, operacionais e institucionais da mais variada índole, com esse agente este escriba não gostaria de casar sua filha.

 

V – Após este filosófico intróito passa-se  a exemplificar sobre o que se afirmou.

Quem se conforma com o gigantismo patológico e descontrolado da nova lei já escolheu – e muitíssimo mal – que conduta profissional adotar. Como, epita-se,  gosto não se discute mas apenas se lamenta, então na condição de cego que não quer ver deixemo-lo à própria sorte. Ele terá tempo para se arrepender.

Quem entretanto, agente público desperto e consciente que não engole tudo o que o cruel mundo jurídico  lhe tenta impingir, esse haverá de simplificar o seu trabalho, sistematicamente e sempre, até onde conseguir sem afrontar o direito.

Nessa direção simplificadora verifique-se como muitos  artigos da lei  podem ser leves ou pesados, a depender de o servidor que os aplique querer auxiliar ou querer dificultar a operação – nesse caso com um proveito que só ele enxerga:

- em absoluto primeiro lugar habilitação, conforme arts. 62 a 70.  

O art. 62 é  útil como uma pinóia, um zero à esquerda de nada. A sua revogação diminuiria a poluição do planeta.

O art. 63 no inc. I consta que ‘poderá ser exigido (...)’. Basta ler até este ponto: pule-se para o dispositivo seguinte. É como dizer ao cidadão que ele, querendo, poderá pagar uma taxa, ou uma contribuição.

O § 2º contém também o verbo poder no futuro, poderá. Pule-se então para o dispositivo seguinte. O mesmo se diga do § 4º, nesta festa da inutilidade institucional.

O art. 64, § 1º, deve ser lido com muita cautela: se a comissão de licitação – que pelo visto ainda existe na lei nº 14.133/21 -  a título de ‘sanar erros ou falhas’ do licitante meter a pata em documento alheio  estará simplesmente adulterando aquele documento, o  que por óbvio lhe é proibido.

O ‘saneamento’ da falha será apenas fazer constar da ata que a comissão considera assim, e não assado como veio escrito por escusável engano do licitante, a sua informação, nada além disso.

No art. 65 o § 2º parece exigir regulamento local para habilitações eletrônicas. Conversa mole para boi dormir. O ente local, se já não o tiver,  que não espere ter esse regulamento antes de licitar.

Não se podem paralisar os certames pela só falta de um regulamento do que já é feito há uma década, e que hoje é quase a única regra: o processamnto eletrônico do que quer que seja. Singelas instruções do edital suprem essa necessidade.

 

VI - O longo art. 67 é possivelmente o mais  icônico conjunto de regras facultativas  de toda a lei, o qual  assusta pelo volume mas não pelo conteúdo.

Habilitação tem sido na prática uma espécie de tragédia. Nunca  precisou  nem precisaria sê-lo, porque quase tudo aqui é facultativo e que o edital exigirá apenas se o seu autor quiser, no caso de ser um  sadomasoquista  que quer sofrer e quer ver sofrerem os outros -  ou então se for obra de um presunçoso jurídico cujo único relevante serviço público ao longo de sua vida será o de se aposentar. Com efeito, transformar o facultativo inútil em exigência para alguém é serviço de, como o disse Jânio Quadros, de onagro.

Refere-se o artigo à qualificação técnico-profissonal e à qualificação técnico-operacional que pode ser exigida do licitante. A primeira expressão significa a qualificação do profissional responsável pelo  objeto, que o licitante indica, e a segunda quer dizer a qualificação da própria empresa licitante, por atestados que detenha em seu nome.

A segunda é bastante mais importante que a primeira, porque atesta o que o licitante já fez, enquanto a primeira indica o que o profissional, que porventura hoje está na empresa licitante, já realizou. Esse profissional entretanto pode morrer, demitir-se, aposentar-se ou de qualquer outro modo desligar-se da empresa ora licitante, e nem por isso a empresa perderá seu currículo de realizações.

O curioso nesta isntância da lei é que não foi especificado o que pode ser exigido da empresa e o que pode ser exigido do profissonal que atualmente a integra; valem as possíveis exigências da lei, portanto, para qualquer dos dois.

Diante dessa inédita  generalização da lei entendemos que não pode o edital restringir as atestações apenas ao profissional ou apenas à empresa: qualquer uma serve, e atesta à suficiência a capacidade técnica do licitante.

Acontece que o caput  do artigo informa que as exigências serão restritas a, o que significa que não podem ser maiores que as da lista dos incs. I a VI – mas podem ser menores que aquilo.

Então, sabendo desse fato o autor do edital, não precisará exigir tudo que a lei lhe permite exigir, podendo selecionar apenas algumas demonstrações dentre aquelas dos incisos.

Recomenda-se exigir alguma(s), porque é importante para o poder público ter certeza de que o proponente sabe realizar o objeto da licitação, o que ele demonstrará  por atestado de  que já realizou algo parecido - em suas parcelas de valor siginificativo e relevante.

E não se impressione o agente aplicador da lei com o volume de informações dos §§  1º a 12, porque esse volume é inversamente proporcional à sua relevancia, jurídica, técnica e  operacional.  Uma seleção criteriosa – e muito rígida – do que exigir é indispensável, dentro da vasta garrancheira de rio  que os cansativos parágrafos desfilam.

 

VII – O art. 68, muito menos prolixo e rebarbativo que o anterior, se refere à qualificação fiscal, social e trabalhitsa do licitante. A palavra qualificação é forçada, porque neste momento apenas se verifica a regularidade do participante quanto a órgãos fiscais, tanto  da receita quanto da previdência social e quanto, ainda, da Justiça do Trabalho.

Isso não traduz qualificação nenhuma, como se pudessem existir mais ou menos qualificados nesse tema, mas pura e tão somente a linear  regularidade  do proponente quanto àqueles fiscos.

Se algum edital deixar de exigir prova de inscrição nas receitas, ou junto às fazendas, isso não o tornará ilegal nem  defeituoso, e o certame pode prosseguir naturalmente porque nada no caput  obriga a exigência. Se a intenção do legislador foi obrigar a exigir, então se lhe recomenda voltar às aulas de língua portuguesa.

O caput do art. 68 informa do que consiste a prova de regularidade fiscal e trabalhista, mas em momento nenhum obriga a exigi-la.

Quanto, porém, à exigência de prova de regularidade junto à previdência social o panorama é diferente: é a própria Constituição federal,    art. 195,  § 3º, que proíbe a contratação pelo poder público de empresa em situação irregular com a seguridade.

Não se fala em inexistência de débito mas apenas em demonstração de regularidade de situação, que se pode obter por parcelamentos da dívida reconhecida, apresentação de guias de recolhimento, embargos a execuções, e outros meios ainda.

Desse modo o edital deve exigir essa demonstração, que entretanto vale apenas para o vencedor do certame, e em algum momento anterior à contratação e não necessariamente no julgamento da habilitação. Será simplesmente inconstitucional a contratação de empresa em débito irresolvido com o sistema de seguridade social.

 

VIII – O art. 69 cuida da habilitação econômico-financeira, e será restrita a duas comprovações: balanço e inexistência de falência. Foi simplificadíssimo o rol das comprovações exigíveis, porém mesmo assim tão resumido consegue ser impreciso.

 Pelo inc. II a lei permite ao edital exigir ‘certidão negativa de feitos sobre falência’, o que não significa coisa nenhuma, pois o que se visa é garantir  que o licitante não está falido,  o eventual e só fato de existirem  ‘feitos sobre falência’ não indica falência de ninguém, sabendo-se  que pode a falência  ter sido requerida, o que é um feito sobre falência,  e indeferida pelo Judiciário.

Lembra o chiste segundo o qual o chefe que ditava à sua secretária,  consternado com o seu desempenho, tranquilizou-a: - Muito bem. Só três erros. Podemos passar à palavra seguinte.

Do modo como escrito o caput, e tal qual no artigo anterior, mais documentos que esses dois não se podem exigir, porém o fato é que nem mesmo esses dois precisam ser exigidos.

Sim, porque acaso passa pela cabeça de alguém exigir prova de saúde financeira dos licitantes num certame para compra com entrega integral e imediata  de vinte mil resmas de papel sulfite, ou de dez mil sacos de batata ?   Ou para um contrato anual de limpeza de uma área de mil metros quadrados ? Ou para pintura de dois andares de um prédio público ?

Ou, seguindo no artigo, capital mínimo, ou partimônio líquido minimo: quem precisa exigir isso nos exemplos de contratos acima enunciados ?  Faz algum sentido, ou se trata de outra terapia ocupacional para o autor do edital ?

Nada é preciso exigir – é o que se quer dizer – em contratos simples e de pouco risco para o ente contratante, a título de qualificação econômico-financeira dos licitantes.

Assim já ocorre na Lei nº 8.666/93, e o mesmo se dá na nova lei – aquela que em outubro de 2.023 não se sabe se vai ou se não vai.

Nos contratos pesados e arriscados, como complexas empreitadas de obras ou de serviços equivalentemente complexos, é mais do que natural que o ente licitador exija demonstrativos econômicos e financeiros – e para esses contratos o artigo está bem, e é proveitoso.

Mas na maioria dos casos que ocorrem, pela simplicidade essencial dos objetos, o observador racional e atento ao interesse público dispensará, galhardamente, toda e qualquer demonstração daquela natureza, por despicienda, redundante e, com isso,  francamente prejudicial.

 

IX - O art. 70, por fim dentro deste tema da habilitação, também precisa ser aplicado percucientemente.

O edital pode aceitar documentação que conste de cadastro de outro ente público, expressamente indicado no instrumento convocatório, pela inteligente regra do inc. II, que provém da Lei nº 8.666/93 e merece elogio. A falta de admissão expressa no edital significa que não será aceito cadastro alheio.

O inc. III, também inspirado na Lei nº 8.666/93, inspira cuidado, porque dá ideia de que licitações que não estejam nos casos ali especificados precisarão exigir mais documentação do que de fato precisam. Reiteramos, quanto a isso, o que acima foi afirmado.

O que se precisa compreender é que o quê de fato o edital precisa tentar atender é o interesse público do ente licitador, e não burocráticas, distantes e irrelevantes burocracias da lei, que nenhum papel utilitário desempenham e em má hora foram inseridas no texto legal.

É hora, outra vez,  de trazer à cena a prédica bíblica contra a letra que mata, em prol do espírito que vivifica.

 

X  - Encerra-se esta curta resenha enumerando-se alguns momentos da Lei nº 14.133/21 que não são o que parecem, e que na sua aplicação podem ser observados apenas em parte, ou por vezes simplesmente desprezados – dentro da mais absoluta legalidade:

- art. 2º, inc. IV – errado. Esta lei não se aplica a concessões, permissões ou autorizações de uso de bens públicos, cuja fonte de direito é a legislação local;

- art. 6ª, das definições. Ninguém se impressione com este armatoste,  este leviatã, este Gilgamesh da mitologia nórdica ([2]).  Trata-se apenas de um dicionário da lei, que serve para explicar novos conceitos do texto legal, e para pouco mais que isso;

- art. 7º, sobre segregação de funções e gestão de competências. Se fosse revogado hoje, amanhã possivelmente   nem o seu autor se lembraria de tê-lo escrito;

- art. 8º, agente de contratação e equipe de apoio, versus  art. 64, § 1º, comissão de licitação.  E agora ? Comissão de licitação, então, ainda existe ? Quem faz o quê ?   Resolva esse impasse o agente público com leituras e consultas, e se necessário com auxílio de psicoterapeutas do trabalho e aconselhamento espiritual;

- art. 11, a ensinar o propósito da licitação. Possivelmente quem licita há quarenta anos deverá recomeçar do zero sua vida profissional (concluindo que nada sabe, talvez ?..);

- art. 17, que ensina a Administração pública brasileira, que licita diariamente há mais de meio século toda espécie de objeto, quais são as fases do processo de licitação ([3]). Que seria do agente licitador se a lei não o ensinasse ?..;

- art. 18, da fase preparatória da licitação. Os comentários são os mesmos. O ridículo de uma lei nacional, sobre o assunto que for,  dificilmente atinge um ponto tal, que  desanima até o mais impertérrito batalhador hermenêutico. O que se teme, em verdade,  é que alguém venha a se impressionar com isto. E o mesmo, idêntico, se afirme do art. 19;

-  art. 22, matriz de risco.  Contratos que a exigem já a incluem no edital, e o fazem há décadas sem lei nenhuma que o autorizasse. A lei aqui autoriza o que já se pratica há decadas com absoluto desassombro.

Mas na esmagadora maioria dos casos essa matriz de risco é anacrônica e absolutamente sem sentido, porque os riscos inerentes aos contratos são mais do  que suficientemente equacionados por reequilíbrios e revisões constantes da lei;

- art. 23, que pretende ensinar como se pesquisam preços no mercado. O comentário se faz despiciendo;

- art. 24, que permite haver orçamentos sigilosos do poder público. Ora, se eles existem é apenas para orientar o mercado e coibir aventuras de licitantes estouvados e aventureiros. Enão, se só para isso existem, como imaginá-los sigilosos ? ([4]);

- art. 25. São tantas as inutilidades, as redundâncias e, até mesmo, as bárbaras impropriedades jurídicas como no § 8º - que inverte a teoria do direito e cria monstrengos como as espécies de reajustamento a) reajustamento em sentido estrito,   como se o existisse em sentido lato,  em oposição a b) repactuação, como se repactuação fosse uma espécie de reajustamento – que é preciso discorrer sobre isso em artigos específicos (como já vimos fazendo).  Aqui o espaço é pouco.

Só o que se recomenda com ênfase ao agente da licitação é uma cautela excepcional ao lidar com aberrações teratológicas do direito como estas, de modo a equacionar racionalmente a questão dos reajustes, e um bom modelo para tanto é o da Lei nº 8.666/93, infinitamente melhor que este constrangedor § 8º, do art. 25, do novel diploma licitatório.

 

XI –Para-se a varredura neste momento, muito longe de ter completado os apontamentos mínimos sobre os excessos, as redundâncias, as atecnias de toda ordem e as intermináveis  impropriedades da nova  lei de licitação, a qual se aguarda que entre em vigor exclusivo no despontar de 2.024.

Não é preciso prosseguir com esta caçada no jardim zoológico. O pouco que se apontou é suficiente para fundar a única mensagem que se pretende transmitir, e que é tão somente a seguinte:

- é possível simplificar as licitações.

 

Não é por ser exageradíssima a nova lei que o bom trabalho operacional estará impedido, se para isso a aplicação do diploma  se der de modo absolutamente seletivo, criterioso, ponderado e atento.

Muito do texto legal pode ser simplesmente deixado de lado durante a elaboração do edital, até uma sua final revisão que confirme os cortes simplificadores ou que, de outro modo, volte atrás n’algum ou n’outro ponto.

Seguir a literalidade de uma lei como esta de que aqui se trata não é propriamente difícil: é impossível.

Trata-se de um campo minado e extremamente incômodo mas que, como este curto artigo se propõe indicar,  pode ser suavizado e racionalizado consideravelmente se se abordar o texto com visão discriminatória, tanto aguçada quanto  mesmo crítica.

Pode andar ultimamente embotada a capacidade crítica do aplicador de normas administrativas, o que se explica ou por desconhecimento dos limites da coercitividade da regra, ou por mero comodismo, ou mesmo – e agora é árduo reconhecer – pelo  impreciso e vago temor que cerca a implantação das novidades pouco claras.

O desconhecido mete medo em grande parte das pessoas, mas também é certo que nada pode ameaçar uma leitura consciente e justificada de qualquer inovação do ordenamento jurídico. Os fiscais querem testemunhar inteligência aplicativa, e não cabeças a rolar.

Sim, porque, a uma, ninguém é obrigado ao impossível, e, a duas, sem alguma ousadia criativa e inteligente o direito e a vida social pouco evoluirão – algo que nem mesmo o mais indeciso legislador pretendeu. 

 

 

[1] Com efeito, lei que dá mancada uma vez dá-la-á potencialmente sempre. Quando a Lei nº 8.666/93 for revogada, então  acreditaremos nisso.

[2] Quem desconhece o que sejam essas duas criaturas e esse engenho saiba ao menos que são, os três, coisas horrorosas, indesejáveis ao extremo, e perniciosas como a invasão russa à Ucrânia.

[3] A recordar o episódio, relatado pelo Barão de Itararé, de seu exame para motorista, no Rio de Janeiro,  década de 30 ou 40. O examinador lhe perguntou se se sentia apto a dirigir, ao que o Barão respondeu que se sentia mais ou menos apto, uma vez que fora  guiando de Recife até a cidade maravilhosa.  Ensinar ao poder público, em 2.021 d. C., quais são as fases da licitação tem a mesma relevância do teste de direção a que se submeteu o nobre Barão.

[4] Apela-se uma vez mais ao rico anedotário nacional. O orçamento público sigiloso tem o mesmo sentido lógico  da reprimenda que o passageiro do táxi aplicou ao motorista que  lhe perguntou qual era o seu destino.  - Isso não lhe interessa, respondeu o passageiro. Sou agente secreto. Orçamento público sigiloso é mais ou menos isso.