ATUALIZAÇÃO: REGULAMENTOS DA LEI Nº 14.133/21(atualização de artigo anterior)

ATUALIZAÇÃO:   REGULAMENTOS  DA  LEI  Nº  14.133/21

(atualização de artigo anterior)

 

Ivan Barbosa Rigolin

(dez/23) 

 

I – É muito pouco provável que exista na face do sofrido planeta outro país institucionalizado que ostente o mesmo amor por regulamentos que nosso Brasil, por obra dos Poderes Executivos de todo nível.

O decreto é o ídolo incomparável de boa parcela dos agentes executivos,  porque no seu sentir esmiúça  a lei e a decompõe em ponto pequeno, tornando-a acessível, compreensível e exequível.  

Trata-se antes e em verdade de uma fixação quase patológica das autoridades executivas,  como uma dependência  inegociável sem barreiras nem limites, a tal ponto que para amplos setores da Administração o regulamento é o principal fundamento do ato a praticar e o primeiro foco de atenção, antes da lei e – muito – antes da Constituição.

No  entender daqueles agentes,  se a lei só em si já encerra densos mistérios, a Constituição, então, apanágio para doutos, é  estratosférica  e impenetrável, mesmo que atualmente reduzida a periódico em fascículos e mais adequada a bancas de jornal – de baixo nível - que a editoras ou livrarias ([1]).

 

II – Não é certo o que reside por trás de tamanha dependência regulamentar: impreciso  temor do novo e desconhecido ?   Falta de clareza ou explicitude da lei ?   Insegurança existencial  ?   Preguiça pura e simples de se precisar começar a trabalhar, para executar as novas regras ?    Algo bom não é.

Os decretos regulamentares vêm melhorando entretanto em nosso país, e não mais se têm produzidos monstruosidades como, por exemplo,  alguns regulamentos  previdenciários que reproduziam toda a lei e nela inseriam disposições de microscópica relevância, sem as quais dificilmente haveria prejuízo para a execução das leis.  O Executivo nessa matéria parece ter aprendido alguma coisa ao longo das últimas décadas.

O histórico apego a regulamentos é tão grande em nosso país que, reportando sobre a  previdência, o  Decreto federal nº 77.077, de 24 de janeiro de 1.976, era denominado a Consolidação das Leis da Previdência Social. Esse regulamento realizava o prodígio de juntar dispositivos de centenas de leis previdenciárias, acredite-se, por vezes alterando sua redação, na tentativa de sse constituir num diploma que unificasse aquelas leis num plexo minimamente executável.

Foi revogado pelo Decreto nº 89.312, de 23 de janeiro de 1.984, que por sua vez foi revogado pelo Decreto nº 3.048, de 6 de maio  de 1.999, que ‘Aprova o Regulamento da Previdência Social e dá outras providências’.  É o que vigora hoje.

Esse teratológico absurdo jurídico, que deve ser o pior já editado no universo conhecido desde sua criação há um quintilhão de anos,  tem 382 artigos e não menciona lei nenhuma. Pelo que dele se lê somente contém disposições dadas por incontáveis outros decretos. Sabe-se que centenas de leis estão por trás das disposições regulamentares, mas ninguém se atreve a trilhar a sua história. Lei, afinal, só enseja confusão ...

O legislador brasileiro perdeu completa e totalmente o controle da legislação previdenciária há mais de 60 anos, e jamais o recuperou, e nem quer ouvir falar desse assunto. Coloca o que precisa por decreto no grande decreto regulamentador da previdência social brasileira. A idéia de que somente lei cria  a despesa pública, em matéria previdenciária no Brasil, é uma piada.

Ninguém se lembra de que existe lei de previdência no Brasil – apesar de que existem várias centenas -  e jamais passa pela cabeça de alguém, autoridade ou cidadão civil, tentar fundamentar um pleito previdenciário em alguma lei; só interessa o decreto, que é para onde as autoridades previdenciárias  dirigirão sua atenção.

O decreto da previdência lembra algum daqueles cidadãos de quatrocentos quilos, que aparecem em programas de televisão e dos quais cidadãos as pessoas perguntam apenas e tão somente como se permitiram chegar àquele estado. 

Similarmente, como foi possível ao país, em mais de meio século, descer ao grau de degradação a que desceu e no qual está chafurdado, em matéria de legislação previdenciária. E ninguém parece se incomodar com aquela aberração das aberrações.

Isto é o regulamento  em nosso país, neste caso focado no exemplo mais degradante e inacreditável.

 

III – A nova lei de licitações prevê também dezenas de regulamentos, os quais vêm sendo – até zelosamente – expedidos pelo Executivo federal.

O seu acompanhamento é importante para muitas pessoas – nós jamais entre elas afora por artigos como este, de mero cumprimento de obrigação profissional  -, afetas a regramentos em ponto menor que as regras contidas na lei. 

Cada aplicador tem uma preferência de regras a seguir: alguns se balizam pela Constituição, outras se orientam por telegramas de ministros, instruções normativas ou portarias de diretores de quarta hierarquia, ou ainda por desabafos em redes sociais.

Mas o que este rápido ensaio se propõe enfatizar é antes de tudo o seguinte:

- a maior parte das ordens legais, desta Lei nº 14.133/21 ou da maioria das leis sobre qualquer assunto,  pode ser atendida sem regulamento nenhum, apenas com sensatez, racionalidade, espírito público e, respeitosamente,  vontade de trabalhar.

Ninguém deve escudar-se na inexistência de um regulamento, previsto na lei como necessário, facultativo  ou recomendável, para escusar-se a cumprir a lei. Francamente não, com raras exceções de contenção evidente da eficácia da lei até a edição de regulamento, como por exemplo o que ocorreu na lei do pregão quanto ao pregão eletrônico.

 

IV - A Lei nº 10.520, de 17 de julho de 2.002 – a lei do pregão presencial -  no art. 2º, § 1º, fixou que ‘Poderá ser realizado o pregão por meio da utilização de recursos de tecnologia da informação, nos termos de regulamentação específica’. 

Nada além disto existe naquela lei sobre pregão eletrônico, de modo que enquanto não adviesse o regulamento instituindo e disciplinando o pregão eletrônico ele simplesmente não existiria. A eficácia da previsão legal estava realmente contida até a edição de um regulamento que verdadeiramente disciplinasse o pregão eletrônico.

Acontece porém que, curiosamente dentro do nosso engalfinhado processo legislativo,  esse regulamento já existia, e era o Decreto nº 3.697, de 21 de dezembro de 2.000, que instituiu o pregão eletrônico com autorização da Medida Provisória nº 2.026, de 4 de maio de 2.000, art. 2º, § 2º.

Aquela MP nº 2.026/00 foi sucedida por 17 (dezessete) outras MPs, uma a cada mês, porém o pregão eletrônico já havia sido instituído desde 21 de dezembro de 2.000, pelo retrocitado Decreto nº 3.697, cuja edição, repete-se, a MP 2.026/00 autorizava.

O genial, extraordinário dessa história é que após dezoito meses da edição da MP nº 2.026/00 uma MP da família converteu-se na Lei nº 10.520, de 2.002.  Qual foi ela ?  Nota de rodapé dá a solução à intrigante questão ([2]).

 O primeiro decreto do pregão elertônico, de 2.000, foi substituído pelo Decreto nº 5.450, de 31 de maio de 2.005, que vale até hoje e que corrigiu imperfeições do primeiro.

Esse é um exemplo icônico de regulamento indispensável: ou por bem se o edita ou então o instituto autorizado pela lei simplesmente não se implementa.

Mas  casos assim  não  se repetiram na Lei nº 14.133/21, pois até onde se vislumbra, e a rigor independentemente do que tenha pretendido a lei,  existem muito poucas  instituições jurídicas  na nova lei que exigem regulamento para serem implementadas, como é o caso do CGRNCP – Comitê Gestor da Rede Nacional de Contratações Públicas (art. 174,   § 1º) – e esse é outro caso icônico de regulamento indispensável.

O funcionamento e a atuação do CGRNCP são regulamentados pelo Decreto nº 10.764, de 9 de agosto de 2.021, e o  seu Regimento Interno foi aprovado pela  Resolução SEGES/ME nº 1/22.

Sem esses dois diplomas regulamentares o organismo que rege o importantíssimo PNCP – Portal Nacional das Contratações Públicas simplesmente não existiria no mundo concreto, e restaria ‘levitando’ no plano da lei até que  regulamentos  o fizessem baixar à terra e o habilitassem a desempenhar  sua função institucional – como ocorreu.

Em casos assim jamais se questiona a imprescindibilidade os regulamentos, mas são raros neste nova lei, ou raríssimos.  O que existe em grande abundância são previsões evasivas, nitidamente despreocupadas e quase levianas, de regulamentos para quase tudo.

O país, com todo efeito, precisa de muito trabalho, na forma da lei e para atender o interesse público  que ela tutela – mas francamente necessita de poucos regulamentos dentre os milhares que existem e sobrepairam o ordenamento jurídico como zumbis institucionais.

A multiplicidade de regulamentos praticamente paralisa o serviço público, uma vez que são tantas as regras a e as normas a seguir que a sua prolificidade só em si inviabiliza um trabalho racional, e em vez de trabalhar sobre o já pesado roteiro da lei o agente passará sua vida a tentar encontrar o artigo do regulamento que orienta o problema de cada hora ([3]).

 

V - Somos visceralmente contrários ao ‘regulamentismo’.

Tal qual remédios, quanto menos houver, tanto melhor para todos,  à exceção do fabricante.

O  agente da licitação, como qualquer humano pensante e que olha para a frente,  precisa importar-se com o fundamento relevante, substantivo, axial, nuclear, nodular, fundante, estrutural, finalístico, e menos, muito menos, com o acessório, o adjetivo, a moldura, o adereço, o detalhe que desvia a atenção, a particularidade que desfoca a meta, o casuísmo assistemático, a futilidade empolada, o cosmético fora de lugar.

Quando se invertem todos os valores, quando se privilegia o fundo em desfavor da figura,  nada de profícuo se há de esperar ([4]).

 

VI – Independentemente de eventual indisposição estomacal para com os editos (decretos), o quadro dos atos regulamentares federais, expedidos para regrar artigos e procedimentos contidos na Lei nº 14.133/21 – que se obtém na internet atualizado até 16 de setembro de 2.023 sob o título de Lista de atos normativos e estágios de regulamentação da Lei no 14.133, de 1º de abril de 2021, indica que até aquela data foram editados  47 (quarenta e sete) atos, sobre fundo verde claro, entre decretos, portarias ministeriais, instruções normativas, uma orientação e até mesmo uma medida provisória.

Dezenas de outros atos estão ainda em elaboração, em fases diversas de desenvolvimento, e são indicados sinoticamente sobre fundos alaranjado e coral, dependendo da natureza da matéria.

Não tem sentido transcrever o imenso quadro neste breve espaço, considerando que a consulta é extremamente simples e acessível a qualquer consulente pela internet,  além de que o mesmo quadro é atualizado periodicamente, à medida em que novos diplomas são  publicados.

 

VII - Malgrado todo o pouco gosto que nutrimos pela supervalorização dos decretos, dos  regulamentos de outra natureza e das portarias ministeriais generalizadamente consideradas ante o robusto arcabouço dados pelas leis formais, é preciso reconhecer que aos Estados e sobretudo aos Municípios aquele rol federal de regulamentos licitatórios pode ser consideravelmente proveitoso.

Em primeiro lugar porque tanto Estados quanto Municípios, querendo e como é comum acontecer, podem encostar naqueles diplomas,  utilizando-os como fundamentos para seus atos, assim anunciando expressamente em qualquer publicidade necessária. Sim, porque  se alguém na União já se deteve sobre os variados assuntos da lei de licitações  o seu meritório esforço é sempre valioso e aproveitável.

Em segundo lugar porque os regulamentos federais servem sempre naturais modelos para a edição de regulamentos regionais e locais, adaptados a cada diferente realidade institucional, econômica e social. Trata-se de gravitação natural ...

Não se quer com isso dizer que Estados e Municípios estejam obrigados a editar os mesmos regulamentos que a União expediu, expede e expedirá, nem a se ater às mesmas regras federais (a menos que as adotem expressamente).

Em absoluto não, porque a constitucional autonomia dos Estados (CF, art. 25) e a dos Municípios (CF, art. 30, inc. I) assegura a essas pessoas políticas gestão administrativa e política próprias, observados apenas os mínimos constitucionais e nada além disso.

Uma boa margem de discricionariedade para a edição de regulamentos locais é imanente às administrações estaduais, a do Distrito federal e a dos Municípios, e com frequência é por esses entes utilizada. 

O único limite à vontade própria dos entes da federação, repita-se, é o ditado pela Constituição Federal – inclusive, para os Estados, na elaboração das suas Constituições, e para os Municípios na formulação das suas Leis Orgânicas.

 

 

[1] Com todo efeito, se na internet inexistisse o site governamental Planalto, que atualiza imediatamente todos os textos legais e indica minuciosamente toda a sua evolução e as transformações ocorridas, dificilmente alguém no país saberia com segurança qual é o teor atual da Constituição, com, em início de novembro de 2.023,  suas 134 (cento e trinta e quatro) emendas mais 6 (seis) tratados internacionais algures considerados como de mesma hierarquia.  Porém mesmo no referido site é preciso dedicar muita atenção e cuidado para se encontrar o texto atual, grafado em preto  entre um cipoal de tachados em vermelho, azul ou na cor que for. O art. 40, por exemplo,  recorda um lindo arco-íris.  E ai   de nós, não fora esse espetáculo pirotécnico.

[2] Só mesmo em nosso tupiniquim  país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza, uma medida provisória é reeditada 17 (dezessete) vezes e depois  convertida  em lei ...  a primeira, não a décima sétima !   Onde foram parar as dezessete MPs subsequentes à primeira ?  Na faixa de Gaza ?   Ora, a primeira não perdeu a validade tão logo decorreu o primeiro mês de sua vigência, de maneira que foi então imediatamente substituída pela segunda, e assim até a décima oitava  ?  Sim, perdeu. Então como pode ter sido convertida em lei um ano e meio após editada, e já tendo sido sucedida por outras dezessete MPs ?  Nosso país precisa sobreviver a tudo, porque nada de similar já existiu !

[3] Tal qual anedoticamente se afirmava que um alaudista de 80 anos passou 60 da sua vida afinando seu alaúde, e os restantes 20 tocando desafinado ...

[4] Observem-se os shows de rock, pop ou como se chame este arremedo de música dos dias de hoje, pior do que a necessidade. A cada espetáculo mobilizam-se aviões, caminhões gigantescos e estruturas físicas e pirotécnicas de milhares de toneladas, aptas a produzir um som que deve ser audível na lua. Bilhões de dólares são movimentados, miríades de pessoas prestigiam cada evento, mas ... e a música ?..  Que raio de arte é essa ?  É tudo, menos musical.  Mutatis mutandis e muito grosseiramente, o mundo dos caminhões e dos ferrolhos é o dos  decretos, e se daquilo tudo ainda resultar alguma música essa lembrará  o mundo das leis ...