DURAÇÃO DOS CONTRATOS (Arts. 105/114)

DURAÇÃO DOS CONTRATOS (Arts. 105/114)

 

Ivan Barbosa Rigolin

(mar/24)

 

I – Este assunto sofreu importantes alterações na Lei nº 14.133/21 com relação ao correspondente direito da anterior lei de licitações, que durou trinta anos.

Melhorou inquestionavelmente a disciplina sobretudo por engessar menos a Administração, e, nesse passo,  por confiar mais no tirocínio do agente contratante do que pelas regras anteriores.

A matéria está compreendida, como o título enuncia, nos arts. 105 a 114 da lei. São 10 curtos artigos, o que constitui um alívio adicional  ao aplicador.

O art. 105 atribui ao edital a capacidade de fixar o prazo do contrato licitado, porém essa liberdade não é tão absoluta quanto parece, porque para determinados objetos existem limitações temporais ao longo  dos artigos seguintes, verbi gratia os arts. 106, 107, 108, 110, 113 e 114.

Caso o contrato pretendido não se ache dentro das hipóteses desses artigos indicados, então é livre a fixação  do prazo, desde apenas que exista disponibilidade orçamentária (não dinheiro em caixa, mas créditos orçamentários, que são rubricas da lei do orçamento anual) e, se o contrato ultrapassar o exercício em que é assinado, a previsão do objeto dentre as metas do plano plurianual – sendo essas regras tradicionais do direito financeiro e orçamentário públicos. 

Ainda que seja elogiável permitir que a autoridade licitadora fixe a duração do contrato, imagina-se que serão observados  os prazos tradicionais da lei anterior, tão  marcante é a tradição nesse sentido,  e isso  ao menos nos primeiros anos de aplicação da lei.

Aos poucos, ganhando confiança o ente contratante para ampliá-los, e conhecendo o resultado da apreciação  das contas pelos Tribunais de Contas, o panorama por certo irá  ganhando novos contornos ante a antiga tradição.

 

II – O art. 106 repete em parte o direito anterior, e quando inova não o faz bem.

Contratos de serviços continuados, incluindo aluguel de equipamentos e de programas de informática (v. § 2º) podem ser celebrados  originariamente pelo prazo de até 5 anos, desde que atestada e justificada a vantagem desse prazo pela autoridade (inc. I), e que existam créditos orçamentários adequados (inc. II).

Aliás, qualquer aluguel ou locação, que são contratos civis ou comerciais,  no plano administrativo não têm como escapar à classificação de contratos de serviço contínuo.

Os contratos de locação,  que os civilistas não admitem sequer que sejam de serviço porque nenhum serviço é prestado pelo locador ao locatário - que apenas cede o uso de equipamentos ou imóveis -, a teor do inc. III deste artigo podem ser extintos pelo ente contratante (a) quando este não dispuser de créditos orçamentarios para a sua manutenção, ou quando (b) o contratante entender que o contrato não mais lhe é conveniente.

Na primeira hipótese dá medo imaginar a desorganização e a falta de planejamento do ente contratante, cujo novo orçamento não consignou crédito para manter um contrato de serviço contínuo que já estava celebrado e em execução.

Em ambas as hipóteses, de a e b acima,  os direitos patrimoniais do contratado precisam ser observados, na forma do § 2º do art. 138. Seria igualmente de arrepiar imaginar que o ente contratante possa desistir de um conrtato em andamento spenas porque mudou de idéia ...

Mas é a impressão que dá o inc. III do artigo  ao admitir extinção sem ônus,  se o contratante passar a entender que o contrato deixou de ser-lhe vantajoso.  Parece texto escrito por um humorista, ou um irresponsável completamente jejuno em direito. É difícil acreditar.

Supor que o contratante se canse de um contrato e o extinga numa boa, sem reparações  patrimoniais - que precisam estar inclusive escritas no contrato, como é o caso das multas – é a própria insânia plasmada na lei. Lembra a menina de sete anos que resolve descontinuar o namorico que iniciou com um garoto que conheceu na festinha do fim de semana. A frivolidade do dispositivo é senelhante.

Então, supondo,  o contratado que duramente venceu a licitação se mobiliza  onerosamente para iniciar a execução, e aluga galpões e equipamentos os mais variados, e loca veículos, e monta estoque de produtos que utiliza no contrato, e contrata empregados por  tempo certo, e contrata seguros, tudo isso para  de uma hora para outra o contratante se enjoar do seu brinquedo e simplesmente explodir o contrato ...  estamos falando sério ?   

Alguém na Administração pública brasileira levará esta previsão ‘sem ônus’ a sério ?  Cremos que nem o seu autor a leva a sério.

O § 1º, tentando colocar um pouco de ordem  na casa, estabelece que aquela absurda extinção ocorrerá apenas na próxima (quis dizer seguinte) data de aniversário do contrato, e não antes de dois meses antes daquilo.

Suponha-se que o contrato a ser extinto aniversariou em janeiro, e se o pretende extinguir por faltarem créditos orçamentários que o cubram no exercício.

Como então, nessa hipótese,  esperar um ano inteiro para extingui-lo, se os créditos já não existem neste mesmo janeiro ?  Lembra o cidadão que, molestado por outro cidadão no metrô, dá-lhe o prazo de vinte e quatro horas  para parar com aquilo. Falta o mínimo realismo ao dispositivo, e é de supor que o autor não domine a tabuada do dois.

Ou será que o contratante deverá suportar o custo do contrato, sem crédito orçamentário, até que o resolva implodir por esse motivo ?  O contrato descoberto assim fica até a conta da lei fechar ...  será isso mesmo ?

Existem regras que estão excritas na lei, mas se duvida por inteiro de que alguém as possa levar a sério. Algo vai ter de acontecer, de não muito republicano.

 

III – O art. 107 lança no mesmo pacote serviços contínuos e fornecimentos contínuos, o que oferece perigo. Serviços contínuos são aqueles sempre necessários ao ente contratante, prestados de modo ininterrupto ou mantidos à disposição permanente em regime de sobreaviso ou  de prontidão, algo como stand-by.  Costuma ser fácil identificá-los dentre os contratos.

Já fornecimento não é serviço, mas compra com entrega parcelada. Resulta perigoso tentar tratar essa compra no regime próprio do serviço, porque muita vez se revela difícil definir se este ou aquele fornecimento é ou não contínuo. 

Por exemplo, em face de um só contrato se o contratado entregar uma vez por dia durante sete dias alguma compra, depois cessar a entrega por uma semana, e depois entregar na terceira semana, e depois cessar e entrega por duas semanas e meia ...  isso é fornecimento contínuo ?   Este aprendiz de escriba não faz idéia.  Sabê-lo-á o legislador ?   Tudo é possível.

Muito bem: após a autoridade ter resolvido esse problema existencial acima exemplificado, e tendo concluído  que este serviço, ou aquele fornecimento, é contínuo, então, caso (I) o edital tenha previsto esta prorrogabilidade, e também caso (II) seja possível atestar a vantagem da prorrogação, nessa hipótese o contrato poderá ser prorrogado por até 10 (dez) anos.

A lei ainda admite a extinção consensual e sem ônus para nenhuma da partes – o que em tais contratos, se de consenso,  é razoável e faz sentido.

 

IV – O art. 108 prescreve prazo de até 10 (dez) anos para os seguintes contratos:

a) contratação de (compra ou aluguel, a lei não diz mas é preciso assim entender uma vez que não se contrata um bem) bens ou serviços no Brasil, que envolvam alta complexidade tecnológica e defesa nacional. A complexidade há de ser atestada no processo, e demonstrada como for possível (art. 75, IV, al. f);
b) compra de material de uso finalístico pelas forças armadas (idem, al. g);
c) aquisição de bens e serviços para alianças estratégicas (L. 10.973/04, art. 3º e seguintes);
d) contratações que potencialmente ameacem a segurança nacional (art. 75, inc. VI);
e) bens e serviços para transferência de teconologia para o SUS (art. 75, inc. XII), e
f) aquisição  por pessoa de direito público interno (União, Estados, Distrito Federal, Municípios e autarquias) de insumos estratégicos para a saúde (art. 75, inc. XVI).

O interesse nessas contratações, face às matérias,  é quase exclusivo da União, mas o texto parece claro e autoelucidativo. O prazo é generoso, e é bom que o seja.

 

V – O art. 109 consigna uma bobagem própria de publicistas que não conseguem vislumbrar nada além do mundo particular da Adminsiração pública, e para os quais o direito civil -  que é maior que todos os demais ramos jurídicos juntos e multiplicados – há mais de dois milênios estatui.

Não é que o ente público ‘pode estabelecer prazo indeterminado’ para contratos civis em que seja usuário de serviço público concedido:  ou ele adere às regras de indeterminação de prazo que os concessionários estabelecem para todo e qualquer usuário, ou ele simplesmente fica sem o serviço.

Celebra-se o contrato, nesses casos, quando o concessionário liga o fio do fornecimento  de energia ao prédio público, ou quando a empresa de água liga a água aos canos do ente público, ou quando a companhia de gás faz o mesmo nos canos de gás,  ou quando a fornecedora de internet passa a abastecer o ente público desse serviço.

That simple. O artigo constitui parolagem flácida para adormecer  gado vacum, tão ilibado e de que tanto dependemos.

 

V - O art. 110, muito razoável, prevê que para os contratos que gerem receita ao ente público, ou então naqueles contratos de eficiência que gerem economia pública, os prazos serão de (inc. I) até 10 (dez) anos para os contratos que não exijam  investimento pelo contratado, e de (inc. II)  até 35 (trinta e cinco) anos para os que o exijam.

Em seguida o inc. II adequadamente define aquele investimento como sendo a realização de benfeitorias permanentes exclusivamente a cargo e a expensas do contratado, e as quais se incorporarão ao  patrimônio público após encerrado o contrato.

Natural a ampliação do prazo máximo para os contratos com investimento, porque o contratado, em princípio,  precisará de bastante tempo para recuperar o seu investimento e fazê-lo dar-lhe lucro.

Esse tempo precisa ser  em geral bastante superior aos dez anos dos contratos sem investimento,  conforme  se observa na maioria dos contratos de investimentos pesados, como por exemplo nos de concessão de obras ou de serviços públicos essenciais.

 

VI – O art. 111 se refere a contratos de escopo predefinido, que é um objeto certo e perfeitamente delimitado,  porém não tem a clareza que poderia ter. Informa que naqueles contratos o prazo de vigência será automaticamente prorrogado quando o objeto não for concluído no tempo contratado.

Lendo o que segue no parágrafo único é preciso entender o caput  como significando que se por culpa da Administração  o contrato exceder o  prazo originário, então será prorrogado esse prazo.

Mesmo em se entendendo assim, é sempre um perigo falar em prorrogação  automática de contratos administrativos, eis que a prorrogação depende de autorização e de termo aditivo consensual entre as partes, o que por si só já exclui qualquer automatismo. Uma coisa é prorrogar o cronograma de execução – o que é viável, lógico, simples e realizado já pelo gestor do contrato -, e outra, bem diversa é prorrogar a duração do contrato, algo solene e burocrático.  Francamente ruim.

Mal parado até este ponto  o artigo, segue com o parágrafo único e seus dois incisos.

Informa-se que, quando a não-conclusão se dever a culpa do contratado,  este (inc. I) será constituído em mora e incorrerá nas sanções existentes, quer na lei, quer, sobretudo, no contrato, e (II) o ente contratante poderá extinguir o contrato (e poderá  passar a cuidar da continuidade da execução por outro contratado).

Se a ideia de prorrogação automática de contrato dá medo, a extinção unilateral acrescenta um pouco de medo ao tenebroso panorama. 

Sem ir muito longe, e apenas por essas previsões, já é possível recomendar ao contratante, com todo empenho e honestidade de propósito  tentar aplicar o inc. I antes de exercitar o inc. II. 

Com todo efeito é sempre muito preferível aplicar ocasional, sensata e equanimemente as penas por inadimplemento ao contratado, e com ele tentar manter o contrato, a explodir, detonar ou dinamitar  o contrato, como a ideia da extinção sugere.

A extinção, como esta lei levianamente a trata, recorda o  garotinho que, denotando uma ligeira mancha de comida no seu paletó, imaginando-a irreversível  imediatamente cogita em  atear fogo à sua vestimenta.  Um radicalismo muito pouco esclarecido.

Qualquer alternativa à extinção em princípio é mais aconselhável que a ideia demolitória  ([1]). Somente se implode um prédio quando na certeza de que ele não mais tem aproveitamento possível: é a última solução.  Extinção é medida extrema, e seguramente na média das situações qualquer alternativa é preferível.

 

VII – O curto art. 112  evoca um desencargo de consciência do legislador, e apenas informa que os prazos desta lei (e se poderia não ter ficado somente nos prazos, mas estendido a previsão a qualquer tema da lei) não excluem nem revogam outros prazos estabelecidos em leis específicas sobre o objeto  em causa.

Cada qual em seu lugar, é o propósito do dispositivo. Se existem prazos específicos  para contratos sobre assuntos específicos e disciplinados em leis especiais, por alguma razão o foram assim estabelecidos, e esta lei geral não cogita afastá-los nem substituí-los.

E nesse caso os prazos desta Lei nº 14.133/21 não precisarão ser observados, fundamentando-se a substituição com este art. 112.

 

VIII – O art. 113 talvez não merecesse existir, porque vincula suas poucas regras ao art. 107, que só em si resolveria o problema.

Contratos de fornecimento  mais  serviço associado, os dois somados, duram até 5 (cinco) anos, podendo ser prorrogados até no máximo 10 (dez) anos desde que (art. 107) prevista em edital a prorrogabilidade, cuja vantagem ao ente contratante, além disso,  haverá de ser demonstrada.

O estranho neste artigo tão simples é que o termo inicial do prazo de cinco anos é o dia do recebimento originário do fornecimento – quando pela regra geral deveria ser o dia da assinatura do contrato, que é uma data certa e conhecida.

Será preciso então receber o fornecimento inicial para apenas a partir de então começar a contar o prazo do contrato, o que é no mínimo muito estranho por implicar uma  adivinhação, e talvez instabilidade na aplicação dos créditos orçamentários. O mais árduo então, em tal contexto, deverá ser equacionar tudo isso adequadamente no edital e no contrato.

 

IX – O curto art. 114 fixa o prazo máximo de 15 (qinze) anos para os contratos de serviços de operação continuada de sistemas estruturantes de tecnologia de informação, não admitida prorrogação para além desse prazo.

O SISP - Sistema de Administração dos Recursos de Tecnologia de Informação conta  com algumas centenas de  órgãos e entidades da Administração Federal, em mais uma demonstração da monumental relevância – indispensabilidade por sequer um dia - dos  serviços de informática para o poder público, tal qual  ocorre na iniciativa privada.

Os contratos a que se refere este artigo ganham importância maior, e maior abrangência de objetos, a cada dia que passa. E o prazo dilatado que a lei  defere àqueles contratos constitui outro reconhecimento dessa realidade.

 

 

 

[1] A recordar também aquela passagem, real,  do editor que mandou seu filho consultar o diretor editorial da empresa para que esse indicasse, dentre os  dois livros que o jovem havia escrito, qual publicar. O diretor editorial, examinando um deles, logo respondeu: - publique o outro.