LICITAÇÕES E CONTRATOS NAS EMPRESAS ESTATAIS (7ª PARTE)

AS   LICITAÇÕES    NAS    EMPRESAS  ESTATAIS  PELA LEI     Nº 13.303, DE 30 DE JUNHO DE 2.016

Ivan Barbosa Rigolin

(set/17)



Sétima parte

Art. 58

O assunto agora, superado o circo de horrores que é o art. 57, é habilitação.

O artigo é imensamente inovador, e tomara que seja lido com inteligência pelos aplicadores - e não com o pavor dos inseguros, o timor reverencialis  dos pouco esclarecidos e o medo até das sombras de quem foi designado par a função de licitador sem saber sequer como se escreve essa palavra. 

Sendo inteligentemente aplicado representa uma nítida evolução do direito neste sôfrego tema, verdadeiro calcanhar de Aquiles da Administração, palco e mote de tantas lágrimas, ódio e ranger de dentes.

Deixando de se reportar ao elenco dos documentos exigíveis pela lei de licitações para a habilitação dos licitantes - verdadeira provação iniciática mais ao gosto de carrascos de campos de concentração do que de pessoas mentalmente normais no serviço público -, os quatro breves incisos  do caput são pensadamente genéricos, e parecem deixar ao alvedrio do edital eleger documentos de habilitação sem figurinos rígidos.

É bem verdade que a liberdade de escolha, pelo autor do edital, não deve ser ilimitada nem deve poder rondar a estratosfera com aberrações ao senso comum e às práticas usuais, porém objetivamente não existem parâmetros nem limites expressos neste artigo quanto à eleição daqueles documentos habilitatórios. 

Espera-se racional comedimento e moderação - por todas as razões do mundo se as epera do autor do edital -, tudo isto a convidar exigir pouco nas habilitações, o mínimo possível e de boa qualidade, do licitante.

A estatal, como a Administração direta e indireta, como parte forte na licitação e depois no contrato, em contratos administrativos tem a faca e o queijo nas mãos contra o licitante, como todos sabem.

Quem precisa ter cuidado contra um mau contrato, ou um contratante público que seja mau pagador, ou que passe a tecer exigências inesperadas, extracontratuais e extralegais - como é comum ocorrer se o contratado por exemplo, em dado momento da execução, deixa de poder comprovar sua regularidade fiscal - ai dele !  Com razão o poder público ou exagerando na dose fiscalista, muita vez submete o contratado a constrangimentos operacionais e financeiros que não eram da regra do certame, nem do contrato.

De outra parte, os exemplos de inadimplência do poder público são vistos a todo dia nos jornais da televisão e do rádio, e em verdade devem constituir um sério motivo de preocupação ao contratado - e não o inverso -, daí ser quase sempre despiciendo exigir exagerada documentação habilitatória nas licitações.

Esse exagero habilitatório, já se tem dito em livros, artigos e aulas, em nada ajuda a ninguém mas atrapalha bastantíssimo a eficiência das licitações, servindo como um espantalho dos fornecedores sérios e mais preocupados em prestar bom serviço que em juntar papéis. Lembram a derrama fiscal do Brasil-colônia.

Que esta lei das estatais seja o marco inaugural de uma nova era nesta tão mal estruturada matéria, ou, de outro modo,  que dê continuidade à revolução que a lei do pregão promoveu nas licitações ao inverter as fases da habilitação e  do julgamento das propostas, o que reduziu significativamente com isso a própria importância da habilitação. A habilitação para nós estará reduzida ao seu tamanho ideal quando desaparecer do cenário jurídico.  Aí, sim, estará enfim na medida perfeita.

Muito bem. Com base no laconismo destes incisos e deste artigo, entende-se que o roteiro dos arts. 27 a 31 da Lei nº 8.666/93 não é  de obrigatória observância pelas estatais, podendo no máximo inspirar ou orientar o edital da estatal, sem jamais obrigá-lo a isto ou àquilo. Nada nesta lei da estatais remete a conclusão diferente.

O inc. I é totalmente estranho a esse ambiente, e fixa que o edital deverá exigir que o licitante comprove poder adquirir direitos e assumir obrigações (?). Deve estar querendo significar  que o proponente deve poder  atestar não estar impedido de licitar ou contratar com  a Administração, e que pode ser sujeito a obrigar-se, bem como a receber pela execução do que realizar.  Se for isso, era mesmo necessário o dispositivo ?.. 

Mais: como se satisfaz esta regra legal ? Que documento se pede, a este título, ao licitante ?  Uma declaração de que não está impedido de licitar e contratar, e de que não tem impedimentos negociais de ordem civil ou comercial ?   Parece-nos que é algo assim.  A lei impõe a regra e quanto ao seu cumprimento parece indicar ao aplicar: vire-se.

O inc. II permite que o edital exija documentação relativa a qualificação técnica, e mesmo assim apenas com relação a parcelas técnica ou economicamente relevantes, o que, remetendo por gravitação natural ao art. 30 da lei de licitações, mesmo assim permite ampla discricionariedade ao edital para selecionar a documentação técnica que entenda necessária a cada caso, ainda que não conste do art. 30 da lei de licitações.

Sim, porque se a regra específica prevalece sobre a genérica, temos essa conclusão. Moderação, racionalidade e inteligência é tudo que se recomenda ao autor do edital, que deve  cuidar do interesse público e do da estatal a que serve antes que do seu próprio ego, ou do prazer patológico em espezinhar pessoas.

O inc. III menciona simplesmente capacidade econômica e financeira, e o aparente desdém ou descaso com que cuida do tema merece de nós o mais sincero e desabrido elogio. A   lei colocou as coisas em seu lugar, e deu a devida importância a esta província da habilitação: praticamente nenhuma.  Se a própria habilitação para pouco ou para nada na prática serve, a sua parte econômica serve para menos ainda.

Tudo o que se disse se repete: o edital escolhe o que bem entender para exigir do licitante a título de demonstração de boa situação econômico-financeira. Alguma coisa a teor da lei, entendemos, precisa ser exigida, ou ao menos é amplamente recomendável que o seja; o quê, entretanto, fica ao alvedrio do edital.

O caput não parece determinar claramente que o edital exija isto ou aquilo, e antes aponta na direção de que pode exigir, daí a recomendação acima.

Por fim, e à exaustão, reitera-se que não entendemos  obrigatório o rígido roteiro das normas gerais de licitação, arts. 27 a 31 da lei de licitações,   nas habilitações das estatais.  Esta lei específica fasta a incidência das normas gerais, como determina a Constituição Federal, art. 173, § 1º, inc. III.

O inovador inc. IV estabelece que o edital ao menos pode - repita-se: não se sabe se o caput é mandatório ou meramente facultador - exigir um adiantamento do licitante, se a licitação for de maior oferta.

Trata-se para nós de uma faculdade do edital, que pode exigir o adiantamento, como pode não o exigir. Não se vislumbra imposição nenhuma ao edital, mas mera liberdade de fazer o que, em outra hipótese, possivelmetne seria tido como proibido - e nem isso é muito seguro.

E para quê o edital  exigiria adiantamento ? O § 2º do artigo o esclarece.

O § 1º informa que quando o certame for por maior oferta os requisitos de qualificação técnica e econômica podem ser dispensados, o que dá a idéia de que quando o certame não for por esse critério precisarão ser exigidos. Não nos parece jurídica  essa impressão.

Não é necessariamente porque se dispensa algo em dada situação que em outra situação a exigência será obrigatória.  Trata-se de se lidar com contrário e não com oposto. O contrário de poder dispensar é nada se prever quanto a isso, e o oposto é que é não poder dispensar. Como o contrário de rir é não rir, e apenas o seu oposto é que é chorar.

É certo que na hipótese do parágrafo é sempre dispensável a exigência - o que não significa a proibição de exigir, mas a simples autorização para não exigir -, mas isso não significa que em outras hipóteses que não a do parágrafo deva dar-se o oposto, podendo dar-se apenas o contrário.

Tudo isto pode parecer jogo de palavras ou conversa de mercador, porém não é. Acontece o mesmo impasse num sem-número de leis, regulamentos, normações e atos reguladores a começar pela lei de licitações, e juridicamente é importantíssimo definir e saber quando  se está diante de uma obrigação ou diante de uma simples faculdade de fazer assim ou assado, ou de nada fazer. Os efeitos da regra, e os comportamentos do aplicador a partir dessa definição,  serão uns ou outros radicalmente diferentes.

O § 2º, que encerra o artigo, evidencia que aquele adiantamento (inc. IV) que o edital pode exigir dos licitantes em certames de maior oferta de preço serve como indenização do prejuízo que o vencedor da licitação enseja à estatal caso, após vencer e ser convocado para pagar o preço e levar o objeto em disputa, não o faça, pelo motivo que for.

Tem a mesma natureza jurídica, no campo do direito imobiliário,  daquele adiantamento de parte do preço do imóvel, que o promitente-comprador paga ao compromissário-vendedor como uma segurança de que efetivamente completará o negócio e dele não desistirá - o que ensejaria prejuízos de variada natureza ao vendedor -, e que é perdido em favor do  vendedor caso o comprador desista do negócio. É idéia típica do direito imobiliário, que agora é transplantada para o direito administrativo das empresas do estado.

Art. 59

Aqui se prevê que "salvo no caso de inversão de fases, o procedimento licitatório terá fase recursal única".

Quando a exceção se torna regra o aplicador da lei precisa pensar duas vezes sobre o que está escrito; nesta lei das estatais a ordem das fases, art. 51, já é originariamente o inverso das fases da lei de licitações, ou seja: esta lei, como a do pregão, fixa que antes se julgam as propostas ou os lances, e apenas depois se examina a habilitação - e apenas do vencedor da primeira fase, é o que se pode concluir do silêncio da lei quanto a isso.

Com efeito, não faz sentido julgar a habilitação senão de quem pode contratar; em sendo este inabilitado, sai do certame e então se verifica a habilitação do novo vencedor, e assim, se necessário, até o último classificado na primeira etapa. Essa é a grande vantagem da inversão das fases,  a de não se perder muito tempo com habilitação de todos e os recursos e as delongas daí decorrentes, quando apenas um deles será o contratado.

Então, quando a lei menciona inversão de fases quer dizer antes a habilitação e depois o julgamento das propostas ou dos lances - algo inteiramente indesejado hoje em dia.  Se ocorrer a inversão, então haverá dois momentos para recurso, o primeiro da habilitação e inabilitação, e o segundo do julgamento das propostas ou dos lances.

Em sendo julgadas antes as propostas ou lances e depois a habilitação, então apenas após tudo isso completado é que se abre o prazo para recursos, que poderão incidir sobre a primeira fase ou a segunda, ou sobre ambas, exatamente como se dá no pregão.

Pelo que se lê dos §§ 1º e 2º o prazo para qualquer recurso é de 5 (cinco) dias úteis, e nada existe de novo quanto a isto na lei das estatais, procedendo-se do modo como tradicionalmente se faz nesta matéria desde ao menos o Decreto-lei nº 2.300/86 - para não retroceder muito no tempo.

Não se inicia nem se vence prazo nenhum em dia que não seja útil, ou seja fora daquele em que existe expediente administrativo na entidade.

Não existe aqui a figura do "protesto pelo recurso", como há na lei do pregão, ninguém precisando anunciar que pretende recorrer para poder fazê-lo; e, é claro, se todos manifestarem por escrito (assinando a ata com essa manifestação de vontade) que não recorrerão, então se pode desde logo passar à fase seguinte do certame, sem aguardar recursos que não virão.

Não se exige advogado para subscrever recursos, apenas se recomendando que quem os elabore seja do ramo, ou muita vez os recorrentes perdem algo,  que por justiça deveriam obter, por mera deficiência redacional na exposição do direito e do inconformismo.

Com efeito, amiúde  requerimentos, recursos, petições e apelos são tão mal escritos que não permitem sequer compreender a que vieram, e o que o autor em verdade quer - e nesses casos a entidade não tem como deferir o que sequer compreendeu. Evite-se, é o que se aconselha a quem cogita recorrer, semelhante falta de educação e de civilidade, através de redigir peças compreensíveis e dotadas de início, meio e fim.

E quanto às omitidas contrarrazões dos recursos, Sidney Bittencourt nos lembra muito oportunamente que

Apesar da LE não informar, far-se-á necessário, como de praxe em qualquer certame licitatório - e tal deverá constar nos regulamentos licitatórios a serem elaborados - a abertura de prazo idêntico para a apresentação de contrarrazões. ([1])

Concordamos e somente se pode concordar, porque se  existe ensancha a recurso precisa existir a equivalente possibilidade de contrarrazão ao recurso, ou se furtaria ao recorrido o direito de defesa contra uma acusação a ele ou a quem julgou sua proposta, seu lance ou sua habilitação, o que em qualquer caso é inadmissível ante o sagrado inc. LV do art. 5º constitucional.

Art. 60

Este artigo, talvez um pouco perigosamente em face do direito anterior e tradicional, estabelece que a homologação do resultado do certame já constitui, só em si e ipso facto, o direito do homologatário à celebração do contrato.  Não era assim antes nem nunca foi, eis que a contratação sempre se afigurou como um direito potestativo da entidade pública, que ela, em atendimento a necessidades e ao interesse público, exercia se e quando quisesse, mesmo que já tivesse homologado o certame.

Deve parecer algo temerária a regra, eis que retira da entidade licitadora o direito de, por qualquer razão ou motivo superveniente ao início do certame e supostamente de ordem pública, mesmo já tendo homologado o resultado não contratar o objeto.  Com efeito, diante de uma tal previsão deve atentar a estatal para apenas homologar o resultado da licitação havida quando estiver apta e pronta para contratar, e não antes disso.

A homologação, dentro de uma licitação,  é o ato de autoridade, ou hierárquico, que habilita o certame a produzir efeitos externos à entidade, e sem o qual todo o certame licitatório fica limitado a uma cogitação interna da mesma entidade, incompleta para os fins negociais a que se propõe.

A mesma natureza tem o ato homologatório de classificação final de concursos públicos para admissão de servidores, e, aliás, cada vez mais a jurisprudência, em nítida evolução, tem consagrado a tese de que, uma vez homologado aquele resultado, esse só ato faz gerar o direito público subjetivo do aprovado e classificado a, pela ordem classificatória,  ser nomeado.  Com a licitação nas estatais esse direito já está consagrado na própria lei.

Inobstante a novidade demandar cautela da autoridade contratante,  sob a ótica pragmatista faz sentido a regra, pois que em princípio a estatal não tem  por que jogar com a expectativa do licitante vencedor, que é a de legitimamente  contratar o objeto que venceu na disputa. Licitação não é folguedo nem divertimento, mas procedimento preparatório para uma contratação pública, e ninguém a promove, e ninguém dela participa, senão para isso.  Já se disse que uma licitação seria a mais sensabória e insossa forma de diversão...

Acautele-se então e doravante a autoridade da estatal - como não era preciso no passado - para apenas homologar o certame quando  estiver prestes a contratar, ou de outro modo, homologando para contratar um dia, pode ser surpreendida até por mandado de segurança que pleiteie a contratação como direito líqüido e certo do homologatário - pois que a esta altura de fato o é.

Se a estatal precisar aguardar algum evento antes de poder contratar, então que não homologue o certame e aguarde o evento, pois que se homologar desde logo materializará o direito do homologatário.

Art. 61

Artigo que por tudo e em tudo parece mais do que óbvio - porém em geral mesmo o óbvio precisa ser escrito -, proíbe que a estatal inverta a ordem de classificação para celebrar o contrato, ou que  celebre um contrato, que foi licitado, com estranhos ao certame.

A obviedade da regra se inicia pela arrevesada idéia de que a estatal possa, em primeiro, homologar o resultado do certame em favor de quem não seja o vencedor do mesmo certame, e, em segundo, que, tenha praticado aquela insânia, ainda contrate quem não venceu o certame. Parece um inadmissível acúmulo de sandices, antes próprio de algum  manicômio licitatório que de entidades cujos dirigentes desfrutem do pleno domínio de suas faculdades mentais.

Pior ainda, entretanto, é imaginar que a estatal licitasse um objeto e depois, tendo obtido um vencedor na licitação e sem que circunstância excepcional alguma tivesse ocorrido, contratasse esse objeto a algum estranho ao certame, alguém que não tivesse participado como licitante.

Não se cogita, naturalmente, de alguma excepcionalidade como por exemplo uma paralisação judicial do certame, muito freqüente por via de medida liminar em mandado de segurança, ou alguma outra eventualidade que impeça a estatal de prosseguir regularmente o certame e no seu ritmo próprio, quando a contratação é urgente.

Em excepcionalidades assim, em que a premência da contratação é evidente, justificam-se as contratações emergenciais sem licitação, porém se não ocorrerem aquelas exceções e se o andamento da licitação for o normal de esperar, então a idéia de contratar o objeto em disputa a alguém de fora do certame é administrativamente aberrante, ou doentia.

Ainda que geralmente mesmo o evidente precisa ser previsto na regra, pensamos que mesmo inexistindo este art. 61 o direito seria exatamente o mesmo, não sendo imaginável supor  pudesse ser diferente.

Assim o analisa, na sua essência, Sidney Bittencourt:

A finalidade da regra é inerente à lógica da licitação, à qual, selecionada a melhor proposta, fica a Administração a ela adstrita, caso venha a celebrar o contrato. Embora o vencedor da competição pública não tenha direito adquirido de ser contratado, adquire o direito de não ser preterido. ([2])

Natural, porque se existe uma classificação é para ser observada, e, se nada de anormal aconteceu durante o certame, então é para ser levado até o fim, e o contrato somente se pode originar do mesmo certame, ou de outro modo a licitação seria aquele divertimento já referido, ou passatempo de momentaneamente desocupados.

 Art. 62

Saindo da obviedade mas sem conter significativa novidade com relação ao direito tradicional da lei de licitações e contratos, este artigo atribui a competência de revogar a licitação por conveniência ditada por fato superveniente ao seu início, como também de anulá-la por ilegalidade, à mesma autoridade que homologa o certame.

Poderia dizer mais a lei: é sempre a mesma autoridade que a) manda licitar; b) resolve recursos; c) suspende ou paralisa a licitação; d) revoga a licitação; e) anula a licitação; f) homologa a licitação; g) contrata; h) altera o contrato, nas hipóteses cabíveis; i) rescinde o contrato, nas hipóteses cabíveis; j) acorda com o contratado dar por cumprido o contrato executado apenas em parte;  k) aplica penalidades; l) prorroga o contrato - entre outras atribuições eventuais que sempre têm ensejo de serem exercitadas.

Trata-se da própria representatividade que o dirigente exerce da sua entidade, administrativamente e em juízo, e não seria diferente em matéria de licitações e contratos da estatal.

A parte final do caput, entretanto, pela sua generalidade é imperdoável, pois que consigna a possibilidade de aquela mesma autoridade convalidar um ato ou um procedimento viciado, sem especificar de que natureza ou monta seria o vício. Quando se generaliza uma regra que cerceia direito, ou quando uma norma que confere a alguém um direito suscetível de prejudicar alguém é por demais aberta e ampla,  deve arrepiar-se o aplicador consciente e atento, porque o risco de prejudicar inocentes é iminente.

De duas uma: ou a lei se refere a meras imperfeições formais que sempre podem ser convalidadas ou aceitas desde logo como válidas - como por exemplo juntar folhas com a seqüência quebrada ou invertida, ou apor um carimbo de cabeça para baixo, ou deixar de juntar ao processo a prova de uma comunicação obrigatória que foi feita e o que pode agora ser provido, ou cometer erro tão insignificante quanto isso - ou então está consignando um absurdo técnico inadmissível, que é admitir a convalidação de um ato inválido, que é nulo de direito.

Escrito como está, o dispositivo permite uma leitura como essa última acima, de que se pode convalidar algum ato viciado de ilegalidade, ou contenedor de alguma nulidade intrínseca. Isso em direito não faz o menor sentido, já que atos nulos são insuscetíveis de convalidação. e absoluta, ligada à matéria de fundo de direito e não puramente de forma.

Nulidades absolutas como são as referentes ao conteúdo ou à essência material do direito não se convalidam jamais, ou de outro modo todo o sistema de garantias do cidadão ruiria de chofre, gerando-se uma instabilidade jurídica que abalaria os alicerces do direito num estado institucionalizado.

Nulidades relativas - se é que a isso sequer se pode chamar de nulidades, e talvez mais propriamente anulabilidades -, que são aquelas de ordem privada e que provieram de erros, se por provocação da parte interessada, estas, sim,  podem ser supridas e corrigidas por convalidação, justificadamente e observados os passos formais necessários.

Mas a lei não desce a esse detalhe, o que incita leituras temerárias. Se com "convalidação" quis apenas se referir a correção de erros, então muito bem,  porém fica o alerta para que não se empreste muito elastério a esta passagem da lei das estatais, art. 62, caput, parte final, ou de outro modo se mergulhará na antijuridicidade mais declarada, sob ilusória color  de regular.

O § 1º deste art. 62, ao estabelecer que a anulação da licitação por ilegalidade não gera obrigação de indenizar - e ponto final -,   não foi feliz, porque pode gerar, sim, e pesada. Imagine-se que a ilegalidade foi devida e provocada pela estatal, que ao errar no edital induziu os licitantes em erro e na mesma ilegalidade, que por vezes é difícil de divisar.

Detectado o erro em dado momento do certame, no qual os licitantes já gastaram os tubos com maquetes, amostras e projetos os mais onerosos e trabalhosos, então a estatal anula o certame, porém não pode isentar-se de indenizar o prejuízo provocado aos participantes de boa-fé, que para a ilegalidade não contribuíram.

O erro  foi apenas da estatal e não dos licitantes, os quais não tinham nenhuma obrigação de o descobrir a tempo. Não podem, agora, ser prejudicados, e toda despesa necessária que comprovarem ter custeado  para participar haverá de ser integralmente indenizada, como manda o mais comezinho princípio de direito civil.

E não se invoque nenhum privilégio ou predominância de direito do poder público ante o particular neste caso, porque não existe nenhum predomínio público, e nenhum interesse público, capaz de prejudicar direitos e garantias individuais, como o é o direito à indenização por prejuízo causado pelo poder público.

Isto é inegável: a regra constitucional da responsabilidade objetiva do estado, consignada e resumida no art. 37, § 6º, da Constituição Federal, manda que o estado indenize objetivamente o particular pelo prejuízo que lhe causou, podendo a seguir, em encontrando algum agente que tenha ensejado aquele prejuízo, cobrá-lo regressivamente por via administrativa ou judicial.  Mas não se furte jamais o poder público, inclusive paraestatal, a indenizar o particular pelo dano que lhe acarretou, tão-logo comprove esse prejuízo e dele seja cobrado.

O dispositivo equivalente na lei das licitações ao § 1º deste art. 62 da lei das estatais é  o § 1º do art. 49, o qual, lido isoladamente, contém o mesmo defeito. Acontece que na lei de licitações acorreu em socorro ao bom direito o excelente parágrafo único do art. 59, que reza: A nulidade não exonera a Administração do dever de indenizar o contratado pelo que este houver executado até a data em que ela for declarada e por outros prejuízos regularmente comprovados, contanto que não lhe seja imputável, promovendo-se a responsabilidade de quem lhes deu causa.

Magnífico !  Proveniente do "antidemocrático" Decreto-lei nº 2.300/86, eis o trabalho de um jurista, e não o de um deputado que comprou sua eleição e tem dificuldade em fazer a letra O na areia com um copo - exatamente desses que redigem muitas das nossas leis, ou parte delas.

Assim de fato é o direito: se o poder público prejudica o licitante, então que o indenize; mas se o mal é provocado pelo licitante, além de não ser indenizado deve ser cobrado por aquilo.

Ilegalidades em licitação são quase sempre  originadas por defeitos do edital e não por atitudes dos licitantes, salvo em caso de estes, por exemplo,  cometerem crimes contra a Administração, como o de apresentar documentos falsos - ainda por exemplo. E não será um capenga § 1º do art. 62 que inverterá o direito. O papel em branco aceita docilmente tudo o que se lhe imprima, mas o direito não.

O § 2º exprime outra vez o juridicamente óbvio, na medida em que o acessório segue o principal: a nulidade da licitação induz à do contrato.

Não se pode imaginar válido um contrato saído de uma licitação inválida. Uma vez anulada a licitação o contrato ipso facto estará invalidado, e os comprovados prejuízos ensejados a quem não teve culpa por aquilo hão de ser reparados, e nesse momento e se se chegar até esse ponto,  o direito civil ingressa na cena, informando ações de indenização ou ressarcimento - com possibilidade de êxito na faixa dos cem por cento.

O § 3º é bom, e melhora significativamente o nível médio do artigo. Após iniciado o certame, apenas após concedido prazo para recurso da anunciada revogação ou anulação, que a estatal pretenda promover, é que se poderá efetuar algum daqueles encerramentos antecipados da licitação.

Seja qual for a modalidade licitatória utilizada, e desimportante qual seja a ordem das fases de habilitação e julgamento de propostas ou lances, a regra é sempre essa, e parece melhor que a da lei de licitações, art. 109, inc. I, al. c, que permite ao licitante recorrer apenas após efetivada a revogação ou a anulação.

Muito bem, porque em ouvindo os  licitantes, interessados no prosseguimento do certame, antes de se o encerrar, ocasionalmente poderá a estatal mudar de idéia e rever aquela sua intenção,  e com isso dar prosseguimento à disputa se convencida de que são insubsistentes os motivos da revogação ou da anulação.  Nada como se conversar - ensina o vaticínio popular - antes de se  partir para a ignorância...

O derradeiro dispositivo deste art. 62, o seu § 4º, lamentavelmente volta ao tautológico, e beira o incompreensível. Manda que se aplique no que couber a casos de contratação sem licitação as regras sobre anulação e revogação de licitação.  O que cabe ?  Quem assegura que algo cabe ?

A expressão no que couber, já temos insistido, é muito cômoda ao legislador que não quer pensar no assunto, e muito incômoda ao aplicador da lei - que tem mais o que fazer.

Não vemos nenhuma aplicabilidade a este parágrafo, aparentemente redigido para poupar ao legislador a acusação de omissão, mas entendemos que antes tivesse ele se omitido.  Perdeu excelente oportunidade de manter-se silente.

Seção VII

Dos procedimentos auxiliares das licitações

 Art. 63

Este artigo introduz uma Seção que,  com originalidade, visa organizar  sob nova denominação  um conjunto de procedimentos, efetivamente auxiliares em matéria de licitações, que até então estiveram dispersos nas leis anteriores sobre licitações, em número de quatro e de que dois deles são utilizados com grande freqüência pela Administração, sejam o cadastramento (de fornecedores) e o registro de preços.

Os dois demais, pré-qualificação permanente e catálogo eletrônico de padronização, são muito menos utilizados, o primeiro porque a pré-qualificação é ainda pouco exercitada pela Administração pública brasileira em face da própria natureza dos órgãos públicos que não a demandam significativamente, e o segundo, catálogo eletrônico de padronização, simplesmente porque o tema ainda é novo, e pouco exercitado sob a forma não-eletrônica.

Seguramente se trata de assuntos que somente crescerão de relevância dentro dos entes públicos de todo nível e natureza, os quais gradativa e invariavelmente se dão conta das vantagens e das conveniências das padronizações de tudo o que, de interesse da Administração,  for  materialmente for padronizável. 

A padronização é uma excelente e necessária prática também dentro da Administração, a qual já é de regra na iniciativa privada há séculos  ou talvez milênios, 

Quanto à pré-qualificação permanente, sobretudo quanto a fornecedores de equipamentos ou implementos de tecnologia, este assunto tem tudo de correlato com a vida e o mundo das empresas estatais, muito mais que com o da Administração pública direta e indireta.

Com efeito, as estatais não podem dispensar, via de regra, um permanente plantel de empresas e de profissionais detentores das técnicas, dos materiais e das atualizações procedimentais  indispensáveis ao desempenho das suas atribuições - muito mais, por exemplo, que o Poder Legislativo, o Judiciário, o Ministério Público e os Tribunais de Contas, e mesmo a maioria dos Executivos municipais. 

A empresa estatal tem um dinamismo comercial próprio antes da iniciativa privada que do próprio poder público que a instituiu, que demanda estes aparelhamentos indicados neste artigo em grau bastante acentuado.

Os arts. 64 a 67, que encerram a regulação das licitações dentro desta Lei nº 13.303/16, disciplinam cada um destes procedimentos auxiliares.

O parágrafo único deste art. 63 parece conter a eficácia do artigo à edição de regulamentos, por cada estatal, daqueles procedimentos. Informa que serão definidos em regulamentos os critérios, "claros e objetivos", que os orientarão.

Dizemos que o artigo parece  conter a eficácia dos procedimentos porque a redação do parágrafo assim induz a pensar, porém não se imagina que a simples tardança na edição de algum regulamento do registro de preços ou do cadastramento de fornecedores por alguma estatal só em si as impeça de promover registros de preços ou cadastramento de seus fornecedores.

O exercício desses dois sistemas conta várias décadas de prática diuturna e regular pela generalidade dos entes públicos no Brasil, e não será agora que as estatais desaprenderão a utilizá-las, ou que precisarão editar regulamentos para lhes dizer como fazer o que já fazem todos os dias há mais de meio século ([3]).

Ainda adicionalmente, se se contarem as regras constantes dos arts. 64 a 67, menos importância ainda terão aqueles regulamentos, talvez similar à idéia de ensinar a ave-maria  ao vigário paroquial.

Não se pode inquinar irregular, entendemos convictamente, o exercício de cadastramento de fornecedores pelas estatais, exatamente como sempre foi e apenas acrescido das regras desta lei, assim como o do registro de preços, que de resto conta com um importante e esclarecedor decreto federal que para aquele âmbito  regulamenta as normas do art. 15 da lei nacional de licitações, o Decreto nº 7.892, de 23 de janeiro de 2.013, que pode inquestionavelmente ser aplicado por toda e qualquer estatal brasileira desde já - se já não é.

[1] In A nova lei das estatais,  citada, p. 290.

[2] Mesma obra citada, p. 291, e entendemos que o ilustre autor se refere à inexistência de direito adquirido, do vencedor do certame, a ser contratado enquanto não homologado o certame, eis de após homologado a própria lei no art. 60 reconhece aquele direito.

[3] Algo como o que ocorreu ao Barão de Itararé nos anos 30 ou 40 segundo relata, quando se submeteu ao exame para tirar carta de motorista no Rio de Janeiro e, à pergunta do examinador sobre se se considerava preparado para dirigir, respondeu: - mais ou menos. Vim guiando de Recife.

 (prossegue)