CONCURSO PÚBLICO

CONCURSO PÚBLICO. RESERVA DE 20% DAS VAGAS PARA AFRODESCENDENTES. PRINCÍPIO DA ISONOMIA

 Gina Copola *

 

I - Deparamo-nos recentemente com o requerimento de um candidato em concurso público municipal contendo o pleito que seja reservado aos candidatos afrodescendentes o percentual de 20% em cada etapa do concurso, e, para tanto, o candidato do concurso realizado por município do Estado de São Paulo invoca o v. acórdão do e. Supremo Tribunal Federal, na ADC nº 41, rel. Ministro Roberto Barroso.

Ocorre, em primeiro lugar, que o egrégio Supremo Tribunal Federal declarou constitucional a Lei federal nº 12.990, de 2.014, que reserva a pessoas negras 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal direta e indireta, ou seja, a referida Lei é uma Lei federal e não nacional, e tem aplicação tão-somente ao âmbito da Administração Pública federal, direta e indireta, e, dessa forma, não vincula Estados e Municípios.

Além disso, o próprio venerando acórdão que o candidato utiliza para fundamento seu pleito, é cristalino ao decretar que:

Como qualquer outro candidato, o beneficiário da política deve alcançar a nota necessária para que seja considerado apto a exercer, de forma adequada e eficiente, o cargo em questão

Ou seja, o candidato afrodescendentes também deve obter a nota de corte para o cargo que pretende exercer.

E como todos os candidatos participam do certame em igualdade de condições (item 2.22, do edital) somente pode ser habilitado o candidato afrodescendente ou não que obtiver a nota de corte estabelecida no edital, e o se o candidato não conseguir alcançar a nota de corte, obviamente que não pode ser habilitado.

Trata-se de aplicação do princípio da isonomia

E mais: o v. acórdão invocado pelo candidato ainda não transitou em julgado, sendo que foram opostos embargos de declaração, que estão conclusos ao relator desde 24 de agosto de 2.017.

 II – E no caso específico do Município em questão, existe uma Lei municipal que dispõe sobre a reserva de vagas oferecidas em concursos públicos o provimento de cargos ou empregos na Administração pública direta, indireta e fundacional do Município de ........................... para afrodescendentes, ou seja, a lei garante a reserva de 20% (vinte por cento) das vagas do concurso público para afrodescendentes, e não a reserva de 20% (vinte por cento) em cada etapa do concurso, e, de acordo com o princípio da legalidade, não cabe outra alternativa senão de respeitar a reserva de 20% das vagas e ao final do concurso ser elaborada uma lista geral, e uma lista especial com relação aos candidatos negros aprovados, conforme reza o art. 2º, § 1º, da referida Lei municipal.

E reza o item do edital do concurso em questão:

“Com escopo na Lei Municipal nº ..............., de 22 de dezembro de 2004, fica reservado aos candidatos afrodescendentes, o equivalente a 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas neste Concurso”

Ou seja, o edital é cristalino ao rezar que fica reservado aos candidatos afrodescendentes o equivalente a 20% (vinte por cento) das vagas do concurso, e não 20% de cada etapa do concurso como pretende o requerente.

O edital do concurso, portanto, precisa ser fielmente observado, em fiel e perfeito atendimento ao princípio da vinculação ao instrumento convocatório.

Tem-se, portanto, que o próprio edital do concurso que é a lei interna do concurso conforme a jurisprudência tem reiteradamente entendido (cf. STF, MS 32176/DF, rel. Ministro Dias Toffoli; STJ, RMS 21696/RS, rel. Min. Laurita Vaz; STJ, RMS 10.043/GO, rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, e STJ, MS 9.253/DF, rel. Min. Gilson Dipp), demonstra que é garantida a reserva de 20% (vinte por cento) das vagas do concurso aos afrodescendentes e não a reserva de 20% de cada etapa do concurso público em questão.

III - E reza, ainda, o item 2.22, do edital:

2.22.  O candidato inscrito nos termos deste Capítulo participará deste Concurso em igualdade total de condições com os demais candidatos”

Tem-se, portanto, que todos os candidatos participam do concurso em igualdade de condições, conforme o princípio da isonomia, sendo, porém, que somente ao final do concurso são reservadas as vagas no montante de 20% (vinte por cento) aos afrodescendentes, tudo isso nos termos da Lei municipal aplicável, e do edital do concurso, que, repita-se, é a lei interna do certame, e vincula a atuação da Administração e do candidato.

E, ainda, conforme se lê do item 6.2, do edital, para ser considerado habilitado na prova objetiva os candidatos deverão enquadrar-se no corte estabelecido na tabela apresentada em tal item, que é “estar entre os 25 (vinte e cinco) candidatos com melhor nota mais os empatados na última nota considerada para esse fim e ter obtido, no mínimo, 50% de acertos na prova objetiva”, e como todos os candidatos participam do certame em igualdade de condições (item 2.22) somente pode ser habilitado o candidato afrodescendente ou não que obtiver a nota de corte estabelecida no edital.

E nada diverso disto pode ser pretendido, conforme o princípio da vinculação ao instrumento convocatório.

E reza, por fim, o item 7.2, do edital:

“7.2 A prova prático-profissional para o emprego de Procurador Jurídico será aplicada no mesmo dia, local e horário da prova objetiva a todos os candidatos presentes, entretanto somente serão corrigidas as avaliações dos candidatos habilitados na prova objetiva conforme Tabela do item 6.2”

E, portanto, se o candidato não atingiu a nota de corte do item 6.2, acima referido, não pode pretender a correção de sua prova objetiva, porque é o que reza o edital, e, repita-se à exaustão, os candidatos participam do certame em igualdade de condições, e é garantida aos afrodescendentes a reserva de 20% (vinte por cento) das vagas do concurso, e não em cada etapa do certame.                                                         

IV – Nesse exato sentido é a r. decisão proferida no Mandado de Segurança nº 1000114-21.2018.8.26.0347, que negou a medida liminar pleiteada por candidato e de onde se lê:

“A Lei Municipal nº ..........., de 22 de dezembro de 2004, dispõe:

Art. 1. O provimento de cargos nos órgãos e entidades da administração direta, indireta e fundacional, obedecido o princípio do concurso público de provas ou de provas e títulos, far-se-á com reserva de 20% (vinte por cento) para afrodescendentes.

Parágrafo Único - As frações decorrentes do cálculo percentual de que trata este artigo, quando maiores ou iguais a 0,5 (cinco décimos), serão arredondadas para o número inteiro imediatamente superior.

Art. 2. Os candidatos afrodescendentes participarão dos concursos públicos em igualdade de condições com os demais candidatos, no que diz respeito ao conteúdo e avaliação das provas.

§ 2º As vagas, reservadas nos termos do art. 1º desta lei, ficarão liberadas se não houver ocorrido inscrições no concurso, ou aprovação de candidatos afrodescendentes.

Art. 3. Os editais de concurso público a serem publicados a partir da vigência desta lei conterão os elementos necessários ao conhecimento do que nela se contém, sob pena de nulidade.

Art. 4 Nos contratos firmados pela administração direta, indireta e fundacional com empresas prestadoras de serviços, a partir da vigência desta lei, deverá constar cláusula prevendo a reserva de 20% (vinte por cento) do total de funcionários, cujos cargos serão preenchidos por profissionais afrodescendentes.

§ 2º Caberá ao órgão requisitante a fiscalização do cumprimento da obrigação imposta às empresas contratadas, por força do disposto no caput deste artigo.

Art. 5. Esta lei será regulamentada pelo poder executivo no prazo de 60 (sessenta) dias, a contar da data de sua publicação. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário. Palácio da independência, aos 22 de dezembro de 2004 (fls.62/63).

Verifico que não assiste razão ao impetrante, pois, de acordo com a Lei Municipal, o provimento de cargos nos órgãos e entidades da administração direta, indireta e fundacional, obedecido o princípio do concurso público de provas ou de provas e títulos, far-se-á com reserva de 20% (vinte por cento) para afrodescendentes, sendo que os candidatos afrodescendentes participarão dos concursos públicos em igualdade de condições com os demais candidatos, no que diz respeito ao conteúdo e avaliação das provas, sendo que somente ao final será elaborada uma lista geral e uma lista especial com relação aos candidatos negros aprovados, conforme reza o artigo 2º, parágrafo 1º, da referida Lei.
Nessa esteira, indefiro o pedido liminar” (Grifamos) 

V – E ainda no mesmo diapasão, decidiu o e. Tribunal de Justiça de São Paulo nos autos da Apelação nº 1000114-21.2018.8.26.0347, relator Des. Marcelo Berthe, 5ª Câmara de Direito Público, que manteve a sentença de primeiro grau, nos seguintes termos:

“RECURSO DE APELAÇÃO EM MANDADO DE SEGURANÇA. ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO. COTA PARA CANDIDATOS AFRODESCENDENTES. Lei 12.990/14 que prevê a cota de 20% para candidatos afrodescendentes quando o número de vagas oferecidas for superior a três. Edital 02/2017 do Município de Matão que previa apenas uma vaga para o cargo de procurador jurídico, de modo que inaplicável a lei em questão. Hipótese de ausência de irregularidade na atuação da Administração Pública. Inexistência de direito líquido e certo. Sentença denegatória da segurança mantida. Recurso desprovido.”

Tem-se, portanto, que não procede o pedido de reserva de 20% para afrodescendentes em cada etapa do concurso, sendo que a reserva a ser atendida é de 20% das vagas do concurso público, em atendimento ao princípio da isonomia.

É nosso singelo entendimento.

 

* Advogada militante em Direito Administrativo. Pós-graduada em Direito Administrativo pela FMU. Ex-Professora de Direito Administrativo na FMU. Autora dos livros Elementos de Direito Ambiental, Rio de Janeiro: Temas e Idéias, 2.003; Desestatização e terceirização, São Paulo: NDJ – Nova Dimensão Jurídica, 2.006; A lei dos crimes ambientais comentada artigo por artigo, Minas Gerais: Editora Fórum, 2.008, e 2ª edição em 2.012, A improbidade administrativa no Direito Brasileiro, Minas Gerais: Editora Fórum, 2.011, e co-autora do livro Comentários ao Sistema Legal Brasileiro de Licitações e Contratos Administrativos, coautora, pela ed. NDJ – Nova Dimensão Jurídica, São Paulo, 2.016, e, ainda, autora de mais de uma centena de artigos sobre temas de direito administrativo e ambiental, todos publicados em periódicos especializados.