Artigo
COMBATENDO MITOS EM LICITAÇÃO E CONTRATOS
COMBATENDO MITOS EM LICITAÇÃO E CONTRATOS
Ivan Barbosa Rigolin
(set/17)
Publicado até o momento apenas em apostila para curso da empresa Fiorilli Software, São José do Rio Preto, 2.017
I - Uma palestra inspirou a idéia dos artigos que, a seu turno, deram origem a esta reflexão sobre temas e fatos curiosos sobre licitações, inclusive o pregão, e contratos administrativos. A matéria não é nem um pouco nova, mas, enquanto vigorar a lei de licitações, é sempre oportuna.
Muitas postulações sobre licitação, à guisa de interpretações da Lei nº 8.666/93, constituem verdadeiros mitos jurídicos, algo como lendas urbanas que um dia aparecem no horizonte por obra e graça de seres marcadamente superficiais sempre que não têm interesse pessoal e imediato envolvido, em geral refratários a aprender o que seja, por vezes nitidamente mal intencionados e cuja leviandade profissional tem produzido grande estrago no âmbito da Administração.
Alguns daqueles mitos licitatórios recordam crendices como a de comer alguns grãos de romã na data tal, ou usar roupa branca na passagem do ano, ou evitar gatos pretos, ou outras incontáveis asneiras de quem, aparentemente, nada mais tinha a fazer quando as concebeu, talvez como simples pilhérias mas que, como tudo que é ruim e nefasto, deitaram raízes no imaginário das gentes. O que é torto, disforme, canhestro e malicioso não demanda muito para se propagar com a virulência da peste negra, e também em exegese jurídica.
Desfilemos então alguns daqueles folclóricos assentamentos, assistematicamente como parece melhor convém em tema tão pouco ortodoxo.
II - Convite e habilitação indesejável.
Inicia-se pelo convite, apesar de toda a carga de antipatia que por ele nutrem os entes de fiscalização das contas públicas. Ninguém se esqueça de que o convite ainda existe, e ainda é muito exercitado pelos entes públicos sujeitos à lei das licitações.
Essa modalidade licitatória, que foi extremamente utilizada sobretudo antes do advento do pregão, poderia ser realizada de modo muito mais simples e descomplicado do que em geral o é, e a principal simplificação consiste em eliminar sempre, e totalmente, a fase de habilitação, em todo e qualquer convite que se realize.
A Lei nº 8.666/93 admite expressamente tal supressão, quando prevê, no art. 32, § 1º, que “A documentação de que tratam os arts. 28 a 31 desta Lei poderá ser dispensada, no todo ou em parte, nos casos de convite, concurso, fornecimento de bens para pronta entrega e leilão” - e grifamos.
Fosse de fato importante a habilitação, conforme sempre insistimos em iterar que não é, jamais a lei de licitações a trataria com tamanho, e merecido, desprezo, dispensando-a sempre em três das cinco modalidades existentes, e também nas duas outras, concorrência e tomada de preços, se efetuadas para fornecimento de bens de pronta entrega.
Nessa hipótese de não se promover a fase de habilitação, perguntarão os aturdidos burocratófilos (filoburocratas?) do serviço público ([1]), como poderá saber a Administração com quem estará contratando, se não habilitar previamente os pretendentes? Simplíssimo: basta exigir dos fornecedores, que se pretendia fossem convidados, porém fora de qualquer envelope e informalmente, todos os documentos que se pretendiam exigir, dentro do rol máximo admitido na lei, e simplesmente não convidar aqueles que não os tenham todos.
III - Convite não se publica.
Como deve dirigir-se, em casos normais, a ao menos três fornecedores escolhidos e convidados pela Administração e como tal não deve ser publicado (v. art. 21, que não manda publicar convite, e art. 22, § 3º, que manda apenas afixar os convites, e não publicar convite algum), então somente devem ser efetivamente convidados aqueles fornecedores que informalmente demonstrem deter todos os requisitos documentais pretendidos.
Os documentos obtidos de cada fornecedor sempre podem, por outro lado, ser anexados desde logo ao expediente ou processo da licitação, para indicar que estão eles habilitados do modo como se pretendia apurar.
Quanto, por fim, ao fato de que (cf. art. 22, § 3º, da lei de licitações) também os cadastrados que o requeiram têm direito a receber o convite, isso em nada afronta a simplificação aqui advogada, pois que inexiste qualquer embaraço em estender convites a quem já se habilitou previamente, e que por isso é já conhecido e qualificado pela respectiva entidade licitadora.
Não é dos conhecidos que deve resguardar-se a Administração mas dos desconhecidos, muitos dos quais são aventureiros e paraquedistas da pior e mais temível espécie. E em geral são esses últimos, seres indesejáveis e que por regra nada têm a perder, os primeiros a acorrer à publicação de quaisquer avisos de editais, se antitecnicamente existir além da afixação do aviso em local de público acesso.
Se, por fim, ainda existem os que defendem o mito da publicação do convite, numa tosca e deturpada ampliação do princípio da publicidade, não estranharia fosse algum deles indiciado em ação popular, por ter realizado despesa pública não autorizada na lei. É algo pouco imaginável num cenário em que se divulga que quanto mais publicidade existir, melhor - mais falso que uma nota de três dinheiros.
IV - Convite e manifesto desinteresse dos convidados.
Outra faceta do convite é a menção ao manifesto desinteresse dos licitantes, expressão utilizada pelo art. 22, § 7º, da lei de licitações, segundo o qual se por manifesto desinteresse não acudirem ao menos três convidados à licitação sob essa modalidade mesmo assim o certame poderá ser aproveitado, se indicado esse fato no expediente administrativo.
Regra excelente, de origem óbvia no Executivo e não em gabinetes de extraterrestres eleitos proporcionalmente, permite não se perder o convite ao qual atenderam menos que os três participantes que de outro modo - exceto se por demonstrada restrição do mercado - seriam exigíveis.
Manifesto desinteresse é a desatenção propositada, a despreocupação pura e simples, o desinteresse verificado sob sua forma mais primitiva e rasa, seja a de simplesmente não responder ao convite formulado pela Administração. Ninguém precisa, neste específico tema das licitações, “formalizar o desinteresse”, ou manifestá-lo por escrito e formalmente, para caracterizá-lo ante uma situação concreta que não despertou no convidado a vontade de concorrer para fornecer obra, serviço ou compra ao poder público.
Ao contrário, quem o formaliza estará provavelmente manifestamente interessado em, nos futuros ensejos de novos convites, ser de novo lembrado e convidado, lamentando, decerto, neste momento não poder participar. Manifestamente desinteressado está e é quem recebe o convite e por ele simplesmente se desinteressa, deixando de respondê-lo, ainda que para comunicar a impossibilidade ocasional de participar. Exatamente como quem recebe convite para algum evento e o lança ao recipiente onde, respeitosamente, deveria jazer a lei nacional de licitações e contratos administrativos.
V - Habilitação, péssima idéia.
O próximo ponto a enfocar, vinculado umbilicalmente aos primeiros, refere-se a habilitação de licitantes, e a esta altura da construção doutrinária sobre licitações não constituirá novidade alguma.
Quer-se apenas, uma vez mais aqui, repisar o que já vem sendo exaustivamente apregoado pelos estudiosos, pelos técnicos e pelos operadores de licitações dotados de bom-senso e de sentido prático, e que em sua profissão aplicam o princípio da razoabilidade: a habilitação deve ser a menor possível.
Quase ousamos afirmar que quanto menor for o volume de documentos habilitatórios que o edital exija, melhor, por mais inteligente, será esse mesmo edital - até o ideal momento em que desapareça por completo do cenário licitatório a fase da habilitação, seja antes, seja depois do julgamento das propostas.
Neste mundo de hoje, em que ninguém dispõe de tempo para coisa alguma justamente quando o tempo é mais necessário do que nunca, e ainda quando a Administração pública é demandada como jamais o fora na história para prestar os mais variados e outrora impensáveis serviços, num quadro assim revela-se virtualmente incompreensível a antiga - pré-histórica - mentalidade de se exigir um vasto rol de documentos dos licitantes, seja para construir a ponte Rio-Niterói, seja para comprar dois caminhões de tomate.
A lei não obriga a exigir em verdade nada: a Constituição (art. 195, § 3º) é que proíbe ao poder público contratar pessoas jurídicas em situação irregular na previdência social, ou seja em débito não-negociado, e pendente de solução; a lei, propriamente, nada exige.
Quem exagera nas exigências documentais é o aplicador, velho e empedernido burocrata que imagina estar prestando o serviço mais relevante e proveitoso ao poder público ao exigir
- atestados de desempenho anterior aos vendedores de cenoura ou de papel sulfite;
- provas de regularidade fiscal emitidas por todos os níveis de governo, quando o seu Município nenhum interesse tem nisso, e muito ao contrário se souber que licitação é competição de propostas e não de documentos, sobretudo os que somente interessam a esferas alheias de poder;
- contrato social de multinacionais fabricantes de automóveis, e o CNPJ dessas mesmas empresas, como se foram pela-porcos do terreno na esquina;
- prova de grande capital integralizado a prestadores de serviços corriqueiros, tal qual isso dissesse alguma coisa a alguém;
- registro ou inscrição em entidade profissional competente, que muita vez não se sabe se existe nem qual é, a vendedores de televisões ou de mandioca brava;
- grande índice de liqüidez a vendedores de mercadorias para entrega imediata e integral;
- registro comercial de empresas individuais, para construção de enormes edifícios que aquelas empresas não realizam;
- decreto de autorização de funcionamento de empresas estrangeiras, em licitações nacionais e que por isso naturalmente não admitem empresas estrangeiras;
- declaração de que o licitante não descumpre as regras de proteção do trabalho do menor, ao licitar obras de grande vulto que serão construídas por gigantescas construtoras as quais por vezes não têm um só menor empregado [2];
- prova de inscrição no cadastro municipal de licitantes que não se precisam submeter a qualquer inscrição para executar o objeto pretendido;
- certidão negativa de falência a vendedores de pão-de-queijo ou extensores de celular destinados a obter fotos selfies,
tudo isso e outras intermináveis e incontáveis exigências, quase todas, além de desnecessárias e desarrazoadas, impertinentes ao objeto, e com isso abusivas, discriminatórias, irracionais, irrazoáveis, e desprovidas de qualquer finalidade ou motivação publicística com relação ao ente que licita.
A Administração precisa selecionar com máximo rigor e extrema parcimônia os documentos que exigirá em licitações - se infelizmente os exigir -, porque exigir mais do que necessita prejudica sempre, por afastar grande número de participantes, mais preocupados em prestar bom serviço ou vender bom material a bom preço que em juntar papeladas, e mais interessados em demonstrar sua qualidade trabalhando e não com dezenas de documentos que sempre podem ser produzidos da noite para o dia.
E nem se argumente com a desgastada tese de que a Administração “precisa conhecer muito bem quem pretende contratar”, pois que isso de fato nunca foi verdade.
A Administração detém a faca e o queijo nas mãos em qualquer contrato com particular, que se não desempenhar a contento sua obrigação será apenada com suspensões e multas, ou declarações de inidoneidade para licitar; deixará de receber e terá rescindido seu contrato, e poderá vir a arruinar-se como se arruinaram centenas e milhares de ex-empresas que, tendo contratado com o poder público após exaustivas licitações, simplesmente foram caloteadas, ou “bigodeadas” pela Administração, por vezes jamais recebendo seus créditos.
Para a Administração, entretanto, caso rescinda o contrato com algum fornecedor que licitou, basta estalar um dedo e os demais participantes acorrerão às pressas, pela ordem de classificação, para contratar a parte faltante, ao atualizado preço do anterior contratado, ou conforme a penúria a qualquer preço...
Já dissemos mais de uma vez que quem porventura gosta de habilitação não gosta de licitação, porque habilitação costuma ser uma inútil perda de tempo e de trabalho, que não leva a praticamente nada de concreto ou aproveitável e sem competição alguma, que é o que de fato interessa promover. Não é à toa que Lúcia Valle Figueiredo postulava que a habilitação não faz pare da licitação.
VI - Pregão não serve para licitar qualquer objeto.
Agora seja abordado o pregão. De início, questão do - já há muito tornado antigo - regulamento do pregão, o Decreto nº 3.555, de 8 de agosto de 2.000.
A lei do pregão, a Lei nº 10.520, de 17/7/02, proveio, como se sabe, da conversão da Medida Provisória nº 2.182-18, de 23 de agosto de 2.001, que foi a última da série das medidas provisórias que se iniciaram com a MP n° 2.026, de 4 de maio de 2.000 e se repetiram, praticamente com a mesma redação por todo o tempo até se iniciar o processo de conversão.
O § 2º, do art. 1º, de todas aquelas dezoito medidas provisórias, previa que “O regulamento disporá sobre os bens e serviços comuns de que trata este artigo.” Esse dispositivo, dessa forma, continha ou impedia a eficácia do caput até a edição do mencionado decreto, o qual descreveria os bens e os serviços passíveis de serem licitados por pregão. E de fato conteve até 8 de agosto de 2.000, data da edição do referido Decreto nº 3.555. Uma vez editado, ficou livre a Administração, que naquele momento era apenas a federal, para licitar por pregão.
Assim foi, entretanto, até a publicação da Lei nº 10.520/02, a qual, surpreendentemente, durante a conversão sofreu drástica modificação, e o antigo § 2º, do art. 1º das MPs, foi simplesmente suprimido da redação final do art. 1º da lei, que teve então apenas o seu parágrafo único, do qual não constava a contenção da eficácia até a edição de regulamento.
Com isso, perdeu completamente seu papel “liberatório” o já editado regulamento, o Decreto nº 3.555/00, passando a jazer no panorama legislativo como que perdido no espaço, algo sem função, tornado gratuito por inteiro, e desvinculado de qualquer finalidade. Servirá, no máximo, como inspiração a quem deseje licitar por pregão - porém cuidado ! Como modelo contém defeitos inumeráveis, inclusive de legalidade pois que contraria em diversos momentos a própria lei que regulamentava.
Esse, no máximo, de “roteiro sugerido”, passou a ser o condão e o escopo do mortalmente golpeado Decreto nº 3.555, de 2.000. Não se tornou ilegal só por esse fato, porém deixou de ser necessário como rol de bens e serviços licitáveis por pregão. De tal sorte, doravante e desde a edição da lei cada edital de pregão livremente elegerá, dentro do critério do art. 1º, da Lei nº 10.520/02, os bens e serviços a licitar, dentro dos que a respectiva entidade pública considere comuns.
Mas o que com efeito impressiona muito mal ao estudioso, ao profissional do direito público e também - assim deveria ser - ao prático das licitações, é o alargamento desmesurado e aparentemente fora de controle dos objetos dos pregões que se realizam, em escala crescente.
Serviços que jamais poderiam ser objetos de pregões, como reformas administrativas de órgãos públicos, organização de concursos públicos, elaboração e implantação de softwares tributários e contábeis, elaboração de planos de carreiras de servidores públicos, consultorias as mais variadas, levantamentos e pesquisas, implantação de regimes próprios de previdência social, organização de serviços de saúde, auditorias e muitos outros serviços absolutamente complexos e impossíveis de simplificar e de descrever passo a passo num edital, e que por isso mesmo dificilmente deveriam sequer ser licitados, com espantosa freqüência o são, e, para cúmulo do absurdo, muita vez por pregão presencial ou eletrônico.
Soma-se então à já indevida licitação o requinte da má técnica e da grosseria institucional de fazê-la por pregão. É um excessivo primitivismo, que a tudo pode comprometer aa seqüência porque aqueles serviços não podem ser negociados como peixe no mercado, nem como serviços de estiva ou de limpeza de pátios - sem qualquer embargo da dignidade desses profissionais.
Em absoluto o pregão não se presta nem jamais se prestou a isso, e a lei corretamente o reserva a bens e serviços comuns, sejam aqueles conhecidos no mercado e dotados de características amplamente conhecidas, facilmente descritíveis, sempre repetíveis e sempre exigíveis iguais e inalteradas. Nada disso está presente nos exemplos dados, e em muitíssimos outros serviços de semelhante complexidade e intrínseca dificuldade concepcional e operacional.
Quando um homem eleger sua namorada ou sua esposa num leilão, ou quando um médico ou um advogado for escolhido por ser o mais barato, ou quando o projeto de um edifício comercial for eleito por ser o menos oneroso, então o pregão servirá para os mais complexos serviços - mas não enquanto aquilo não se der.
Conhecem-se bem as intimidações que os órgãos de fiscalização impingem a servidores que pretendam evoluir e andar para a frente, acenando-lhes com o inferno na terra e punições arrepiantes, que evidentemente os atemorizam à quase paralisia intelectual, e a um quase semi-servilismo próprio do homem das cavernas. São atitudes de fiscais despreparados e que ainda não disseram a que vieram a este mundo, e que, à impossibilidade de impressionar pelo intelecto, tratam de intimidar pelo poder institucional que têm nas mãos. A esses José Ingenieros dedicou seu Homem medíocre, e que a terra lhes seja leve.
Acontece porém que os servidores fiscalizados, com tal freqüência intimidados a realizar pregões para tudo quanto se lhes antolhe como objeto de licitação, precisam, como puderem, manter-se altivos e balizar-se na Constituição e na lei, anteparo e escudo naturais na sua profissão, e resistir a investidas ditadas pela ignorância combinada com prepotência tanto quanto possam, até porque o terrorismo institucional não tem muito futuro, e não é prestigiado sequer pelos superiores daqueles agentes, muito mais esclarecidos e tratáveis.
VII - Nem sempre indicar marcas é proibido.
Outro mito em licitação - desta vez propiciado pela própria lei e não por assombrações administrativas - diz respeito à crendice relativa à assim dita impossibilidade de a Administração indicar marcas ou modelos dos bens que pretende adquirir em licitação, o que aparenta contrariar a lei de licitações, em momentos como o art. 15, § 7º, inc. I, ou o art. 25, inc. I, ambos a proibir a indicação de marca nas licitações.
O que tem aquilo de real e verdadeiro é que é e sempre será proibido indicar marcas quando não existir um motivo técnico para tanto, porque a indicação só em si dirigiria a licitação de modo a prejudicialmente restringir a competitividade e afrontar a igualdade entre os potenciais licitantes. Se não houver outro modo de esclarecer o que o ente licitador de fato quer sem exemplificar com marcas conhecidas, então que sejam indicadas diversas delas, abrindo o leque de objetos aceitáveis - porque se apenas um o for será caso de padronizar esse bem ou essa marca, como se examinará adiante.
Temos ao menos três hipóteses em que mais do que permitido torna-se logicamente obrigatório ao edital indicar a marca, e quando for o caso também o modelo, do material, equipamento ou bem desejado:
1ª) se existir um só produto, de marca específica, que atenda a necessidade da Administração, e mais de um vendedor, então far-se-á obrigatória na licitação a indicação da mesma marca e das especificações pertinentes, ou de outro modo a Administração irá adquirir o que não deseja, ou que não lhe serve. Trata-se de uma regra de pura lógica, contra a qual não poderia prevalecer regra legal contrária alguma, e nem sequer caberia que tal regra existisse, por simplesmente ilógica;
2ª) se o material pretendido, com sua marca, seu modelo e suas especificações, é padronizado, e se existe na praça mais de um fornecedor, então será igualmente obrigatória a indicação de todos os aspectos padronizados do bem no edital, pena de outra vez, em não sendo isso providenciado, a Administração sujeitar-se a comprar material fora de seu padrão, ou seja fora da especificação que por qualquer motivo anteriormente levantado ensejou a padronização.
E não seja olvidado que praticamente toda e qualquer característica de qualquer material - se houver justificativa técnica para tanto - é suscetível de padronização, tais como são marca, modelo, idade mínima ou máxima, desempenho mínimo, rendimento, cor, transparência, ruído máximo ou mínimo, regularidade, visibilidade, audibilidade, timbre, forma, peso, material, cheiro, gosto (por curioso que pareça), princípio ativo, origem, composição, fórmula, processo de fabricação ou qualquer outro que a imaginação humana possa engendrar.
Em podendo ser tecnicamente justificada a padronização, pode ser efetuada, e o bem padronizado precisará ser indicado nas licitações, sem qualquer possível argüição de vedação, que nesse caso deixa de ter sentido;
3ª) nas reposições de peças ou componentes pode a Administração - e se considerarmos o dever de boa administração deve e não apenas pode - indicar a marca e o modelo da peça a ser adquirida, sendo da marca original do produto que integrará.
É fato notório, além de que o barato sai caro, que peças não-originais de reposição - fabricadas em oficinas pela-porco de fundo de quintal por marreteiros merecedores do ergástulo com chicotadas semanais e oitiva forçada de música de Stravinsky por ao menos duas horas diárias -, danificarão quase que invariavelmente o equipamento que deveriam servir.
Assim, o referido dever principiológico da boa gestão pública manda exigir peças originais para reposições de equipamentos, ao menos daqueles que contenham certo grau de refinamento ou complexidade. A marca há então de ser destacada e exigida particularizadamente, sem meias-palavras, subterfúgios ou escamoteações, pois que somente assim estará atendido o melhor interesse da entidade compradora.
VIII - Objeto físico nem sempre deve ser tratado como compra.
Uma curiosidade em licitação, que por vezes e conforme o tratamento que o edital lhes empresta assume ares de mito, é a de que certos objetos em licitação conforme o caso tanto podem ser compras quanto podem ser serviços.
Qualquer objeto que esteja pronto nas prateleiras de alguma loja, à espera de comprador, é compra, enquanto que outro objeto da mesma espécie e natureza, que, entretanto, pela sua dimensão, ou pelo material de que seja confeccionado, ou pela cor, ou pela peculiaridade de algum detalhe, ou pela especificidade que refoge a linhas pré-concebidas de produção, precise ser fabricado segundo alguma norma ou projeto, sendo que o seu custo nesse caso será dado sobretudo pelo inédito e ingente trabalho que a produção envolve, então esse mesmo material deixa de ser compra para converter-se em serviço,
Com efeito, a mão-de-obra envolvida, muita vez dificílima ou tremendamente trabalhosa, não raro altamente especializada e difícil de formar, amiúde responde pela quase totalidade do seu valor final.
Em caso assim, por evidente toda desejável diluição de custos que uma linha de montagem acarretaria desaparece, ou não existe, já que nenhuma linha de montagem será montada para produzir tão incomum e especializado artefato. Como classificar como compra, se assim é, um tal objeto, em que o material utilizado pouco pesou no custo final, ante o especializado, demorado, complexo e custoso serviço que foi necessário. Trata-se, portanto, de serviço e não de compra nesse caso.
Como exemplos se podem citar próteses ou órteses, sempre individuais e produzidas para atender a necessidades individualizadas, ocasiões em que serviço pesa em geral muito mais que o material empregado; houvesse a possibilidade de produção em massa de próteses, o custo de cada qual desabaria em face da sua multiplicação uniforme.
Outro exemplo ocorre no caso de instrumentos musicais, os quais se forem de fábrica, produzidos em série no império dos mandarins com materiais por vezes comuns e baratos - e mão de obra semiescrava -, têm um preço, porém se confeccionados por autores renomados e com material selecionado, envelhecido e tratado com primor artesanal custam já na origem, por vezes, quinhentas vezes mais.
No primeiro caso compram-se os instrumentos como material, e no segundo compra-se o serviço de confecção, o que resulta drasticamente diverso. Falando-se por exemplo em violinos novos e em dólares americanos, o primeiro vale cem no mercado e é compra, e o segundo por vezes custa vinte e cinco mil, e a esta altura somente pode ser tido como serviço.
O que para quem elabora editais se pretendeu levantar com este assunto foi a necessidade de atenção para a perfeita caracterização do objeto como compra ou como serviço, sabendo-se que se se confundir obra com serviço isso pouco afetará o regime jurídico do contrato, que será sempre administrativo, porém o mesmo não ocorrerá em caso de compra, contato sempre civil e que por isso se submete a regime jurídico privatístico e em tudo rigorosamente diverso do primeiro, com contornos e conseqüências equivalentemente díspares.
O que contém de mítico este assunto é só a idéia de se pretender de antemão que todo objeto material e físico que se adquira seja compra, e nunca serviço. Não é verdade, e ainda que não se tenha ainda equacionado convenientemente esta conclusão, e ainda que resida muita subjetividade nestas categorizações dentro da prática, dizer que todo objeto físico que se licite é compra constitui um mito em licitação.
IX - Parcelamento e fracionamento não são palavrões.
A simples menção a parcelamentos, fracionamentos ou execuções parciais dos contratos administrativos só em si costuma infligir aos aplicadores da lei \arrepio e calafrio, sem qualquer motivo.
A matéria consta primariamente, no seu aspecto que pode assustar, do art. 8º, da Lei nº 8.666/93, sendo que em momentos subseqüentes da lei aquela impressão se dissipa, como se verá.
O art. 8º referido, fixa que “a execução das obras e dos serviços deve programar-se, sempre, em sua totalidade”. Na sua aparente ingenuidade esta disposição não leva em conta que nem sempre a autoridade dispõe de todo o recurso, ou as demais condições, com que realizar a obra completa, ou programar o serviço necessário em sua desejável integridade, ainda que deles necessite, ao menos na parte que for possível, em quase desespero.
Falta-lhe verba para construir o hospital com seus dez andares, ou todas as escolas de que a cidade carece, ou ainda para contratar um serviço essencial por cinco anos e em todas as suas etapas e fases, e o numerário de que dispõe faculta-lhe apenas edificar parte daquilo, ou as duas etapas iniciais do serviço.
A despreocupada restrição do caput do art. 8º, entretanto, cede vez à razão no parágrafo único, que, sensata e ajuizadamente, restringe a proibição de parcelamento do objeto apenas em caso de existir toda a condição, técnica e financeira, para a contratação integral.
Agora, sim, fala o legislador e não o feitor ou o capataz, e indica que é apenas o fracionamento desmotivado, injustificado e injustificável, irrazoável, sem causa, gratuito, divorciado da necessidade, sem finalidade de interesse público, o proibido. O que, por oposição, tiver causa, seja de ordem operacional, seja financeira, seja de outra natureza técnica, isso evidentemente está e é sempre permitido e cabível - simplesmente porque atende a estado de necessidade do administrador, e não decorre de seu capricho ou idiossincrasia.
Reforçam esta convicção outros dispositivos da lei, como, relativamente a compras, o art. 15, inc. IV, que ao invés de restringir a compra parcial manda subdividir as compras em tantas parcelas quantas se revelem vantajosas e econômicas, e sobretudo o art. 23, § 1º, relativo não apenas a compras mas também a obras e a serviços, que fazem o mesmo.
O placar pró-fracionamento bate o contra por cinco a três, em menções na lei. E nem sempre a lei apenas permite fracionar, porque em alguns momento determina o fracionamento ou a divisão do objeto.
Um mito que rui, desse modo, ante quem ainda se disponha a postular em seu favor.
X - Sobre homologação e adjudicação.
Na pouco provável hipótese de que alguém ainda faça diverso, outro antigo mito envolve a questão da homologação e da adjudicação, a primeira da licitação, e a segunda do objeto daquela.
Homologa-se, com efeito, o certame licitatório inteiro, endossando-se-o, avalizando-se-o e, quem o faz, assumindo com isso a responsabilidade pela sua correção formal. Já a adjudicação se dá com relação ao objeto da licitação, e significa tão- só a atribuição daquele objeto a alguém, ao vencedor do certame.
Nas licitações tradicionais, regidas pela lei de licitações, quem pratica ambos esses atos é a autoridade superior à comissão de licitação, e nessa ordem prevista no art. 43, inc. VI, da lei de licitações. Após homologar o certame, o que se dá apenas após resolvidos todos os incidentes do julgamento das propostas, inclusive recursos, a autoridade adjudica o objeto ao vencedor, eis que encerrada e pacificada a disputa. Não se adjudica coisa alguma a ninguém enquanto o certame não estiver confirmado pela autoridade, através da homologação.
Homologação é o ato que desembaraça algum procedimento administrativo exatamente para que possa produzir efeito externo, tal qual ocorre nos concursos públicos. A adjudicação do objeto somente terá sentido operacionalmente lógico, portanto, após a homologação do certame, ou de outro modo, se acaso a comissão, logo após o julgamento, adjudicar o objeto ao vencedor, algum recurso a seguir interposto, e que seja provido, poderá obrigar ao indizível vexame de a Administração precisar anular a precipitada adjudicação, para realizá-la em nome do efetivo vencedor, afinal extraído da fase recursal.
Por essa razão é, como no dizer de ilustre ex-Ministro, imexível a ordem de todos os atos descritos no art. 43, em cujo inc. VI antes aparece a homologação e apenas após a adjudicação, não se devendo levar em conta para esse efeito, como chegou a ser comum ocorrer, a falta de ordem escrita no art. 38.
O art. 38 contém uma verdadeira lista de compras em supermercado que permite quaisquer alterações da ordem em que foram escritas as operações sem prejuízo do resultado desejável, e a demonstração disso é a ordem em que aparecem, naquele art. 38, o inc. VII, que menciona adjudicação e homologação, e o inc. VIII, que cita recursos, quando se sabe que os recursos sempre ocorrem anteriormente à homologação da licitação e à adjudicação do objeto. Fosse uma ordem certa e necessária a dos incisos do art. 38, então jamais surgiria o inc. VIII, com seu teor, antes do inc. VII.
Tudo isso acima quanto às modalidades da lei de licitações, porque na lei do pregão, em face da sua essencial celeridade e máxima informalidade admissível, quem adjudica o objeto ao vencedor, caso ninguém proteste por apresentar recurso no prazo legal após ser anunciado o resultado do pregão, é o próprio pregoeiro.
Isso se dá por economia de tempo, coerente com a ligeireza procedimental do pregão - que se instituiu exatamente para isso. Assim, nos pregões, após o pregoeiro anunciar o seu resultado e indagar dos participantes presentes se algum deles protesta por recorrer de algum ato do certame, e não receber protesto algum, não haveria por que postergar a adjudicação, já que nenhum recurso doravante será admitido, e ao menos no plano dos licitantes o assunto está encerrado.
O único risco material é o de que a autoridade superior, recebendo os autos do procedimento, deixe de homologá-lo por lhe apontar algum defeito, porém nenhuma repartição minimamente organizada e na qual as instâncias se falem permitirá que um tão vexatório amadorismo como esse ocorra, neste mundo que conta com centenas de meios de comunicação imediata e infalível. Pensou nisso o autor da lei do o pregão ao atribuir ao pregoeiro a competência de adjudicar se inexistir recurso, e com toda razão técnica e operacional.
Se houver recurso - não apenas protesto, mas efetivamente o recurso - quem o decide é a autoridade superior, e, uma vez que o expediente já está com essa autoridade, é também esse superior quem adjudica o objeto ao vencedor, após decidir o recurso. E a homologação se dá a qualquer tempo antes da contratação, a autoridade superior resolvendo essa questão dentro de seu âmbito de competências. Tudo é ditado pela racionalidade e pela economia procedimental e de tempo.
E o mito quanto a tudo reside apenas na idéia, comum no passado q mas que por vezes ainda se noticia, de que nas modalidades tradicionais a comissão classifica e adjudica o objeto ao vencedor, e apenas após isso remete o processo ao superior para homologação - tudo errado. O papel da comissão de licitação se encerra quando a autoridade superior homologa o certame, para depois aquela mesma autoridade poder adjudicar o objeto ao vencedor.
XI - Prorrogação de contrato emergencial.
Outro tema que por vezes atenaza a já sempre ameaçada serenidade da autoridade contratante segundo a atual lei nacional de licitações e contratos administrativos, e que assume ares de outro mito licitatório, é o de saber se é para valer a aparentemente imobilizante previsão da parte final do inc. IV, do art. 24, da lei de licitações, que sem maior detalhamento reza “vedada a prorrogação dos respectivos contratos”.
Trata-se de contratações emergenciais, para atender a situações a exigir urgência de atendimento, e procedidas com dispensa de licitação, em contratos de ate 180 (cento e oitenta) dias de duração. Tal vedação de prorrogação seria para qualquer contrato emergencial, de qualquer duração, ou apenas para aqueles que já atingiram o prazo máximo? Vale dizer: pode-se contratar emergencialmente por menos que 180 dias, e prorrogar-se esse contrato até no máximo 180 dias, ou, de outro modo, qualquer contrato emergencial, de qualquer prazo, só em si já é improrrogável?
Está para nós correta a tese de que pode ser prorrogado, havendo motivo e justificativa, o contrato emergencial, desde que o prazo total final não ultrapasse o máximo estabelecido no inc. IV. Quem pode o mais, que é contratar por até 180 dias, deve poder o menos, que é contratar por menos tempo que aquilo e depois, se necessário, prorrogar o ajuste até aquele prazo máximo total..
Não será apenas por ser emergencial, entendemos, que estará proibida qualquer prorrogação, porque podem efetivamente surgir ensejos, e surgem com marcante freqüência, de se precisar prorrogar um contrato emergencial cujo prazo tenha sido porventura subestimado segundo a real necessidade, porque a urgência afinal persiste, ou porque ocorre nova situação de urgência, conjugada à primeira ou dela decorrente, a qual se precise atender e se possa atender por prorrogação do contrato já celebrado.
Não há razão por que entender restritiva a uma só celebração, em casos assim, a regra in fine do inc. IV, do art. 24, da lei de licitações, e simplesmente porque além de não estar expressa tal restrição ela nem seria lógica ou razoável, se o que ali se visa é atender a necessidades excepcionais da Administração dentro de prazo que, se exercido inteiro, é mais que razoável numa lei que prevê contratos de até 12 (doze) vezes aquilo (art. 57, inc. II, combinado com § 4º), ou até mesmo mais que isso (art. 57, inc. I, dependendo de sucessivas e indeterminadamente repetidas prorrogações de diretrizes dos planos plurianuais).
Parece-nos que a lei, por mais indigesta que em seu conjunto total se afigure, e que neste passo reconheceu e se curvou ante excepcionais estados de necessidade da Administração, dificilmente conteria um formalismo tão gratuito e despropositado quanto esse - outro mito que não merece acolhida.
XII - Limite financeiro da modalidade pode ser ultrapassado se por regulares acréscimos do valor do contrato.
Este a seguir é um mito que infelizmente ainda dá esporádicos sinais de vida em alguns rincões dos entes de fiscalização - como aqueles moribundos in extremis que às vezes se movem e assustam a todos os circunstantes - é o de se saber se pode ser ultrapassado o limite da modalidade licitatória utilizada para uma contratação que sofreu aditamentos e acréscimos ao longo da execução, todos eles fulcrados na lei, e teve por isso seu valor final muito acrescido com relação ao contrato originário.
Desde logo é possível, e com sobejante tranqüilidade, responder afirmativamente à indagação: é juridicamente regular e possível que no curso da execução do contrato, sobretudo no caso das prorrogações e extensões autorizadas em lei, o valor final pago ultrapasse o limite de valor estabelecido na lei, que desde 1.993 não se alterou apesar de toda a inflação verificada no período.
O valor estimado para a contratação apenas serviu para a escolha da modalidade, e a reserva de verba. Uma vez licitado o objeto, a contratação originária não pode ultrapassar o limite da modalidade, é o lógico e o razoável que se depreende da leitura do art. 23, da lei de licitações, e não terá sido para outro efeito que a lei instituiu as modalidades, separando-as por limites máximos de valor, os quais funcionam, naturalmente, apenas no momento da contratação originária.
Não se admite que o valor originário do contrato, sem incluir prorrogações, extensões ou mesmo revisões cuja necessidade pode ocorrer como pode não ocorrer, ultrapasse na primeira contratação o limite de valor fixado para a modalidade. Repita-se: apenas para limitar financeiramente essa contratação originária é que existe o art. 23, da lei de licitações.
A escolha da modalidade, entretanto, terá sido acertada se a primeira contratação resultante da licitação havida puder ficar dentro dos limites de valor daquela modalidade, e a escolha da modalidade terá sido desrespeitada se a contratação originária exceder aqueles limites de valor - hipótese evidentemente proibida.
Apenas para se eleger a modalidade licitatória adequada, e com isso se reservar o numerário suficiente, foi que se previu, estimativamente, o valor originário do contrato.
Nada, entretanto, em momento nenhum na redação da lei, e nem por princípio, e nem em tese, nem muito menos no “espírito da lei” - expressão que a nosso ver precisaria ensejar processo por vadiagem intelectual -, nada em absoluto no direito positivo vincula a observância do limite de valor da modalidade por toda a extensão temporal que venha a ter o contrato.
Este mito, felizmente agonizante, que jamais teve fundamento nem a mínima razão para existir, é dos mais perniciosos que o mundo das licitações já testemunhou, e precisa ser extirpado do folclore jurídico com urgência, onde ainda exista.
XIII - Não existe licitação necessariamente reservada a micro e pequenas empresas.
Um derradeiro mito licitatório que se elenca - não porque estes são os únicos existentes, mas apenas porque esta reflexão alguma hora precisa acabar ... - se refere à arrevesada e inexplicável idéia de que precisam existir licitações fechadas ou reservadas às micro e pequenas empresas, por força da Lei c Complementar nº 147, de 7 de agosto de 2.014.
Deve-se esse mito, ao que parece, àqueles que leem a lei somente até o ponto que lhes interessa, como se a parte restante não existisse, e então passam a ver o direito sob essa ótica parcial.
A questão é a seguinte: a LC 147/14 deu ao art. 48 da LC 123/06, o estatuto das microempresas e das empresas de pequeno porte, esta redação:
"Art. 48 Para o cumprimento do disposto no art. 47 desta Lei Complementar, a administração pública:
I - deverá realizar processo licitatório destinado exclusivamente à participação de microempresas e empresas de pequeno porte nos itens de contratação cujo valor seja de até R$ 80.000,00 (oitenta mil reais)".
Até esse ponto parece que as MEs e as EPPS ganharam na loteria. O problema é que a lei prossegue assim:
“Art. 49. Não se aplica o disposto nos arts. 47 e 48 desta Lei Complementar quando:
I – (revogado pela LC 147/14)
II - não houver um mínimo de 3 (três) fornecedores competitivos enquadrados como microempresas ou empresas de pequeno porte sediados local ou regionalmente e capazes de cumprir as exigências estabelecidas no instrumento convocatório;
III - o tratamento diferenciado e simplificado para as microempresas e empresas de pequeno porte não for vantajoso para a administração pública ou representar prejuízo ao conjunto ou complexo do objeto a ser contratado”. (Destaque nosso).
Diante do disposto no inc. III, e apenas diante disso, já é possível concluir que jamais a Administração precisará observar os arts. 47 e 48 - ou seja: jamais precisará reservar alguma licitação apenas a MEs e EPPs - porque jamais é vantajoso para a Administração suprimir uma parte dos potenciais licitantes.
Jamais é vantajoso a quem quer que seja reduzir a concorrência entre os seus potenciais fornecedores. Não existe exceção, porque cortar potenciais licitantes nunca é vantajoso ao ente público licitador.
Se uma licitação tiver oito participantes, pode ser bom. Se tiver nove será melhor, mas se tiver dezessete será ainda melhor, mas não melhor que se tiver sessenta participantes, prontos a fornecer obras, serviços ou bens, todos aberta e livremente concorrendo em preço dentro da qualidade mínima que o edital exige. Em pregões tanto melhor, porque todos aqueles licitantes poderão bater suas próprias propostas escritas com novos lances verbais, e a competição, em prol do menor preço que o poder público terá a pagar, poderá ser furiosa. Tudo recomenda o maior número possível de participantes em qualquer procedimento licitatório, e os Tribunais de Contas com freqüência apontam como defeito de licitações a pouca publicidade, que gerou poucos participantes e com isso pouca competição.
O mundo tem mais de sete bilhões de habitantes. Alguma pessoa diverge de que quanto mais licitantes houver melhor será ao poder público ?
Mais licitantes são sempre melhor do que menos licitantes, em qualquer circunstância, sob qualquer ponto de vista – desde que seja sério e honesto de propósito. Discordará, naturalmente, o pilantra a quem interessa viciar o edital com dirigismos que o favoreçam e eliminem a concorrência.
Pouco importa se existem pequenas empresas, microempresas, nanoempresas ou empresas infinitesimalmente microscópicas, somente detectáveis por microscópios eletrônicos de varredura. Ter mais empresas concorrendo, sejam quais forem, é melhor do que ter menos, ontem, hoje e por toda a eternidade. O capitalismo se baseia nisso, e como sabemos é o pior regime econômico que existe, fora todos os outros.
A seguir assim a legislação brasileira, espera-se que para participar de licitação no Brasil somente se admitirá pequena ou microempresa. O único entrave no momento para tanto é a Constituição Federal e a legislação de normas gerais de licitação.
Mas além de profundamente ilógica a idéia de tentar fazer diminuir a concorrência para favorecer as MPEs em licitações – porque a LC 123 absolutamente não obriga coisa alguma nesse sentido –, uma tese como essa revela-se simplesmente ilegal, porque contraria o mais alto princípio da licitação que é o da maior competitividade possível entre os licitantes, plasmado como princípio e como norma objetiva no art. 3º, § 1º, inc. I, da lei nacional de licitações.
Licitação é sinônimo de competição, de modo que o art. 3º da Lei nº 8.666/93 – que é a lei das normas gerais de licitações e contratos administrativos no Brasil, e portanto se situa acima de leis como é a LC 147/14 – assim determina:
“Art. 3º (...)
§ 1º É vedado aos agentes públicos:
I – admitir, tolerar, nos atos de convocação, cláusulas ou condições que comprometam, restrinjam ou frustrem o seu caráter competitivo, inclusive no caso de sociedades cooperativas, e estabeleçam preferências ou distinções em razão da naturalidade, da sede ou domicílio dos licitantes ou de qualquer outra circunstância impertinente ou irrelevante para o específico objeto do contrato, ressalvado o disposto (... – segue matéria sobre produtos nacionais, impertinente ao caso)
Assim, ao tentar restringir a competitividade nas licitações, tentando fazer privilegiar as MPEs, a LC 123/06, com a redação que lhe deu a LC 147/14, a lei das MEs e das EPPS revelar-se-ia simplesmente ilegal, se não fosse o inc. III do art. 49, que a LC 147/14 se esqueceu de revogar porque o legislador não deve tê-lo enxergado, ou, tendo enxergado, não entendeu o que significa.
Qualquer restrição à mais ampla competição possível de licitantes - se não for por específica e justificável razão técnica que o edital ou o expediente da licitação evidencie - contraria diversos momentos deste inc. I do § 1º do art. 3º da lei de licitações, a saber:
(I) compromete, restringe e frustra a competitividade;
(II) estabelece preferências às MPEs apenas por serem MPEs e não porque o objeto justifique as preferências;
(III) tenta proteger as MPEs do local em que se licita, violando a igualdade de todos dentro do direito.
Este mito restritivo, propalado bombasticamente em 2.014 pelos espertalhões de sempre que vendem cursos e seminários salvacionistas, constitui mais um embuste dentre tantos que correm e assolam o cidadão ininterruptamente por todos os meios de comunicação existentes.
Nenhuma licitação no Brasil nunca esteve nem está fechada a micro ou pequenas empresas, porque além de indecente, imoral, antieconômica, cartelizante, contrária ao interesse público, à razoabilidade e à motivação, essa idéia, antes mesmo que um mito, representaria um indesculpável desvio de finalidade pela lei que coloca o interesse comercial de uma categoria de empresas acima do interesse público nacional - se não fosse o inc. III do art. 49, que salva todo o panorama.
[1] Se ainda vivesse o grande e inigualável gênio de Monteiro Lobato por certo reescreveria seu conto Velha praga, referindo-se porém não mais a Jeca Tatu, como no início do século o fez, porém à burocracia na máquina estatal, que constitui a mais asquerosa e perniciosa praga da história da administração pública brasileira.
[2] E o transpositor para a lei de licitações dessa idéia constitucional, concebida em prol do direito do trabalho no mundo empresarial, é alguma espécie de extraterrestre acaso ungido com mandato político, tal o seu grau de alienação com relação ao mundo real do direito. Com o mesmo sentido poderia a lei permitir que o edital exigisse prova de que o licitante não mantém escravos a seu serviço.