Artigo
JUIZ DE GARANTIAS. QUE LIÇÃO FICA PARA OS MUNICÍPIOS?
JUIZ DE GARANTIAS. QUE LIÇÃO FICA PARA OS MUNICÍPIOS ?
Ivan Barbosa Rigolin
(fev/20)
I – A implacável e interminável discussão que em dezembro de 2.019 e no início deste 2.020 se travou e se trava em torno da novel figura jurídica do juiz de garantias merece alguma reflexão, ainda que técnica e teórica, pelos Municípios, ainda que não tenham Poder Judiciário e ainda que, por sorte, algo assim ali dificilmente ocorre nas matérias que próprias às comunas.
Não se pretende propriamente analisar o mérito daquela nova instituição constante do art. 3º da Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2.019, que integra o chamado pacote anticrime - composto por três projetos de lei concebidos pelo Ministro da Justiça Sérgio Moro, e portanto de iniciativa do Executivo federal -, artigo esse que modificou o Código de Processo Penal para nele introduzir os arts 3º - A até 3º - F, contemplando a nova figura do juiz de garantias.
De mérito apenas manifestamos que essa deve ter sido uma das piores idéias do legislador brasileiro em todos os tempos, que somente procrastina, atrasa, lentifica, embaralha, enrola e engrossa o processo penal, como se não fosse ele já suficientemente lento e travado só em si, e como se ainda necessitasse de outras causas favorecedoras da prescrição, que diferentemente do processo civil não se interrompe com a propositura da ação.
Patético só em si porque dá ideia de que o juiz único, que sempre foi único porque é o único em toda nação civilizada, é parcial e não garante coisa alguma, exigindo-se alguém que garanta os direitos do réu –algo próprio de circo de cavalinhos e não condizente com a dignidade do Poder Judiciário nem do país como um todo -, o juiz de garantias tem sua verdadeira motivação conhecida por cerca de duzentos e dez milhões de brasileiros, contra tudo que seus conceptores alardeiam.
A causa real da instituição, introduzida pelo Congresso Nacional no projeto executivo originário que nada de semelhante continha, é inominavelmente ruim pois que visa apenas manter os conhecidos criminosos hoje processados, e os que ainda venham a sê-lo, impunes e livres para prosseguirem viajando de iate e esquiando na Europa. Quem sempre postulara que o crime não compensa deveria atualizar sua visão.
Ocorre que a indesejabilíssima criação neste fim de janeiro de 2.020 teve suspensa a sua execução por tempo indeterminado graças a uma medida liminar de 43 folhas que o Ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal, deferiu na ADIn nº 6.298/DF, movida pela Associação dos Magistrados Brasileiros e outros, assinando-a em 22 de janeiro de 2.020. Ao ser publicado este artigo talvez a realidade já seja outra. Observe-se o autor: uma associação de juízes brasileiros, e não algum aventureiro acaso dotado de legitimidade para a propositura.
Mas não é esse o ponto que se visa focar, porém o tema para reflexão pelos Municípios que suscita, que é o da quebra do pacto federativo, e o da invasão de competências normativas de um Poder do Estado por outro Poder, competências essas que a Constituição reserva para cada Poder e que não admitem esbulhos, substituições nem apropriações externas.
Mais do que a motivação absolutamente péssima da instituição do juiz de garantias o que técnica e definitivamente, e antes de qualquer outra consideração, não desce pela goela, é a injustificável invasão de competência legislativa privativa de um Poder por outro – e falamos da União, mas o fenômeno pode se dar no Distrito Federal, nos Estados e nos Municípios.
Vejamos.
II – A Constituição brasileira de longa data adota o sistema tripartite de funções do Estado preconizado por Montesquieu na sua tornada ultraclássica L´esprit des lois, que reside na base de todo o direito público ocidental. O art. 2º de nossa Carta fixa que
são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
Mas era interessante o, hoje derrogado, parágrafo único do art. 6º da Constituição anterior - a Emenda Constitucional nº 1, de 17 de outubro de 1.969 -, que assim estabelecia:
Salvo as exceções previstas nesta Constituição, é vedado a qualquer dos Poderes delegar atribuições; quem for investido na função de um deles não poderá exercer a de outro.
Não mais consta da Carta esta regra mas com todo efeito faz falta porque, hoje, possivelmente auxiliaria a prevenir a criação de juízes pelo Poder Legislativo, sem a iniciativa e sem a participação do Judiciário... como o cidadão que se põe a opinar sobre o casamento de seu amigo, enfiando a colher onde não foi chamado. O país troca a Constituição e anda para trás.
É sempre curial observar que o Congresso não cria ministérios nem secretarias de ministérios para o Executivo; que o Executivo não institui órgãos nem unidades administrativas do Senado, nem da Câmara dos Deputados; que o Tribunal de Contas não remete projetos modificando a estrutura do Legislativo, do Executivo nem do Judiciário; que o Ministério Público se atém a seus próprios departamentos e divisões na iniciativa legislativa que constitucionalmente detém... então como e por que motivo poderia o Congresso inventar juízes, como os que denominou de garantia ?
Então passou a ser o Congresso Nacional o Poder que organiza o Poder Judiciário nacional ?
Ora, que patético quadro, que envergonha a quem tenha a mínima noção do que sejam as funções do estado !... O Brasil teria passado, institucional e efetivamente, a ser a festa do caqui, ou a casa da sogra ?
III – Vejamos quanto ao Executivo.
O Presidente da República, representante do Executivo federal, tem competências legislativas privativas definidas no art. 61, § 1º. inc. II, als. a a f, da Constituição Federal. A criação de cargos no Executivo por exemplo (art. 61, § 1º, II, a) somente o Presidente da República propõe, por iniciativa privativa sua e de ninguém mais.
Nem por emenda um outro Poder cria cargo no Executivo: o Congresso pode rejeitar, nas votações de projetos do Executivo, a criação deste ou daquele cargo, ou de todos, ou a transformação de cargos, ou a reclassificação de cargos, ou a redenominação de cargos, ou a extinção de cargos, porém jamais pode acrescer a criação de cargo(s) que não constava(m) do projeto executivo.
E a razão é muito simples: quem propõe a organização administrativa do Executivo é o Executivo e somente o Executivo.
Quando ouro Poder puder criativamente organizar o Executivo, então a repartição harmônica e a independência entre os Poderes do estado terá ruído, desaparecido, sido extinta do ordenamento constitucional.
O Congresso pode impedir a expansão do Executivo, como pode impedir a redução do quadro deste último, como pode impedir a modificação daquele quadro que não é o seu – inquestionável, porém o que o direito não admite é que o Legislativo, ele próprio, por iniciativa ou por emenda, institua cargos novos, e realidades funcionais até então inexistentes, nos quadros de outro Poder.
IV – Agora Legislativo e Judiciário.
Aquelas referidas competências privativas ou reservadas ao Executivo pelo art. 61 da Constituição são, equivalentemente para o Legislativo, reservadas pelo art. 51 à Câmara dos Deputados, e pelo art. 52 ao Senado da República.
Quanto especificamente à criação de cargos, pelo art. 51, inc. IV, só a Câmara dos Deputados propõe a sua criação para o seu quadro, e pelo art. 52, inc. XIII, só o Senado propõe criá-los para os seus quadros. Poderia ser diferente ?
É a paridade constitucional, e a regra da harmonia e da independência entre os Poderes do estado, ambas postas a funcionar e em plena aplicação.
Se falharem, pobre estado...
V - O Poder Judiciário, na forma do art. 96, incs. I e II da Carta-cidadã, é o único Poder estatal que propõe a criação de seus próprios cargos, e os projetos de lei respectivos ali se iniciam, passam à aprovação do Legislativo e após isso seguem para a sanção presidencial. Três Poderes são envolvidos na criação portanto, porém a iniciativa é exclusiva do Judiciário.
O mesmo se diga do Ministério Público, que pelo art. 127, § 2º, da Constituição propõe ao Congresso a criação de seus cargos, iniciativa essa que após ser aprovada pelo Legislativo segue para a sanção do Presidente da República. Outra vez três Poderes (ou dois Podres e uma instituição permanente e essencial á função jurisdicional do Estado que na prática é um quarto poder).
O Tribunal de Contas da União, pelo art. 73 da Carta que remete às competências fixadas para o Judiciário no art. 96, por isso também detém a iniciativa privativa de propor a criação de seus cargos, e inquestionavelmente constitui um quinto poder estatal na realidade dos fatos.
VI – Então, nesse panorama institucional o Executivo não propõe criação de unidades do Congresso; o Judiciário não propõe criação de unidades administrativas do Legislativo nem do Executivo; o Ministério Público não propõe organização nem reorganização dos Poderes; o Tribunal de Contas também se atém, nesta questão, aos seus próprios limites e seus próprios quadros de pessoal.
Um Governador não propõe criação de cargos na Assembléia Legislativa; as Assembléias Legislativas não propõem reestruturação do Executivo, nem do Ministério Público de seu Estado, nem do respectivo Tribunal de Contas. Adstringe-se aos quadros do Executivo que governa, e o mesmo se dá no Legislativo, no Judiciário e no Tribunal de Contas de cada Estado-membro da federação.
Um Prefeito não propõe reforma administrativa da Câmara Municipal, como uma Câmara não propõe criação de cargos no Executivo. O Legislativo ou aprova ou rejeita a proposta do Executivo para mudar seu quadro próprio, mas não pode ter iniciativa de modificar qualitativamente, ou quantitativamente, a proposta executiva.
E o mesmo vale dizer quanto a projetos que a Câmara aprova e remete ao Executivo para sanção, os quais podem ser sancionados no todo ou vetados em parte – mas a matéria em si não pode ser modificada.
Vale dizer, em resumo: um Poder não mete a colher no âmbito interno de outro quanto a criação de cargos; pode impedir a criação, mas não pode modificar a natureza ou a quantidade da matéria que aprecia.
VII – De que obscuro grotão do universo jurídico, ou de que instância dantesca o Congresso Nacional extraiu a idéia de propor, e afinal criar cargos de juízes de garantia, que são juízes e portanto servidores integrantes e pertencentes exclusivamente ao Poder Judiciário ?
Ainda que tenha sido por emenda a um projeto de lei do Executivo, jamais cabia a Congresso inventar cargos para o Judiciário, porque essa ofensiva lhe é vedada em caráter terminativo pelas regras constitucionais diretas e expressas que acima foram referidas.
Mas também já seria proibida a ingerência legislativa em matéria organizacional do Judiciário, antes de por aqueles artigos, pelos próprios e antecedentes princípios constitucionais de tripartição harmônica e independente dos Poderes do Estado: um não inventa penduricalhos, adereços, acessórios ou firuletes para os quadros de outro ! É tão difícil aceitar ou observar esta norma da mais cristalina explicitude ?
Aceitaria acaso o Congresso a propositura do Executivo criando unidades administrativas do Legislativo, e cargos para provê-las ?
Além da péssima motivação que já foi declinada e que todos bem conhecem, a criação de cargos por um Poder para outro desborda, tecnicamente em matéria de processo constitucional legislado, da mais comezinha ordem institucional em uma nação constitucional e moderna.
Oxalá permaneça o juiz de garantias, infelicíssimo parto congressual até aqui não muito bem concluído, nas profundezas do limbo judicial até a sua completa absorção pelas instituições que não cessam de evoluir ([1]).
[1] E que até a publicação deste artigo as coisas já não tenham mudado...