Artigo
VALE A PENA UMA CONSTITUIÇÃO COMO A NOSSA?
VALE A PENA UMA CONSTITUIÇÃO COMO A NOSSA ?
Ivan Barbosa Rigolin
(mar/20)
Origem
I – A quem contempla nossa Constituição há mais de 31 anos desde seu dificílimo parto no Congresso - submetido a toda sorte de lobbies e balcões de negócios que lembraram mercados de peixe, e debaixo de uma pletora inaudita de influências dos mais variados setores da economia e das tendências e dos modismos “humanísticos” da ocasião – já deve ter ocorrido a questão: vale a pena ter e manter esta Constituição ?
Com todo máximo efeito, é de estarrecer uma Constituição que muda mais do que uma pessoa muda de roupa, ao ponto de ensejar a pilhéria segundo a qual a alguém que procurou numa livraria a Constituição o livreiro respondeu que não a tinha, porque não trabalhava com periódicos.
Imagine-se a perplexidade do editor jurídico diante de quadro assim. Não se conhece uma só edição impressa da Constituição após a EC 103/19, a reforma da previdência, sobretudo quando se sabe da PEC paralela que tramita para estender aos entes federados as novas regras, que deveriam estar contidas por excelência na EC 103 mas que dela foram excluídas.
Qual editor é louco para publicar algo assim ? Não fora a internet e sobretudo o magnífico site Planalto a classe jurídica simplesmente não teria como trabalhar. As Constituições impressas que temos são hoje material para pesquisa histórica, ou que guardamos pelo valor sentimental que lhe atribuímos ao longo dos anos. São tão operacionais quanto automóveis a gasogênio.
Um fato significativo é o de que os desvelados autores das obras monumentais de interpretação constitucional nos idos de 1.990, por vezes com vinte volumes, em geral não as reeditaram, tão logo se deram conta de que o ambiente institucional e jurídico, já então, não permitia esperar estabilidade alguma das instituições. Se o vissem hoje...
Sucessão de emendas
I - Informa o site Poder 360, na internet, que em seu 30º aniversário, em 5 de outubro de 2.018, a Carta, que já sofrera 99 emendas, tinha 1.475 outras emendas já protocoladas no Congresso, algumas já em tramitação e outras aguardando apreciação. Em março de 2.020, quando já temos 105 emendas promulgadas, aquele número evidentemente subiu, e parece que tão somente o céu é o limite.
Num quadro assim resta bastante difícil defender a categorização da nossa como sendo uma Constituição rígida, que é aquela cuja alteração exige procedimento especial e diverso daquele necessário para a alterações de leis. São exigidos dois turnos de votação no Congresso, e votos de ao menos três quintos, ou 60%, do conjunto total dos Deputados e dos Senadores para que se altere a Constituição.
Pois bem, se com toda essa dificuldade procedimental nossa Carta foi alterada 111 (cento e onze) vezes nas últimas três décadas, e se existem algo como dois milhares de PECs – propostas de emendas constitucionais – protocoladas e à espera de votação... ora, mas quanta rigidez !...
Seria amplamente preferível termos uma Constituição das que se apelidam flexíveis, que não exigisse quórum e procedimentos especiais para alteração, mas que não mudasse tanto.
Não deve existir uma só pessoa na face do planeta que decifre o que jurídica ou institucionalmente representa uma Constituição como a nossa de 1.988, nem onde pretende desembocar.
A Constituição-cidadã
III – Batizada por Ulysses Guimarães Constituição-cidadã ao seu sofrido nascedouro em 1.988, hoje em dia é de indagar se algum cidadão brasileiro se orgulha de ter uma tal mentora institucional, ou de viver dia após dia debaixo de uma tal matriz de cidadania.
A quem responda que sim, se a seguir se lhe indagar a qual Carta em verdade se refere, talvez invoque aquela de que por último se lembre, com umas cinqüenta ou oitenta emendas – se é que sabe o que é uma emenda constitucional, onde fica isso e para quê serve.
O quadro, juridicamente, é tétrico. Vejamos em resumo.
Após promulgada em outubro de 1.988 a Carta repousou placidamente por rês anos e meio sem sofrer qualquer emenda – algo hoje difícil de acreditar.
A EC nº 1 foi de 31 de março de 1.992, e alterava os arts. 27 e 29 da Carta para dispor sobre remuneração de Deputados estaduais e Vereadores.
A última emenda – neste momento exato, ao início de março de 2.020, porque no fim do mês já poderemos ter outra(s) - foi a nº 105, de 19 de dezembro de 2.019, versando sobre a transferência de recursos federais a Estados, ao Distrito Federal e a Municípios mediante emendas ao projeto de lei orçamentária anual, matéria essa para o art. 166-A, que instituiu.
Nesse meio tempo, em 7 de junho de 1.994 foram promulgadas seis emendas de revisão, a recordar uma errata constitucional - que alteraram dispositivos da Carta. Somando-se às atuais 105, temos o total de 111 emendas em 31anos e meio da Constituição, sendo que os seus primeiros três anos e meio não sofreram emenda nenhuma, o que faz concentrar 111 emendas em 28 anos, o que faz resultar, a partir de 1.992 e por divisão simples e simplória, 4 emendas por ano.
Magnífica é portanto nossa Constituição, que foi emendada quatro vezes por ano desde 1.992. Lembra o paciente de cirurgia plástica que se operou uma vez e depois outras trinta vezes para consertar o estrago da primeira intervenção.
O conjunto das 105 + 6 emendas editadas até o momento promoveu verdadeiras trocas de Constituição, como se tivessem acontecido algumas assembleias nacionais constituintes. Quem leu a versão original e lê a Carta hoje por vezes não reconhece o diploma, como se se tratasse de constituição estrangeira. A matéria da primeira versão foi revirada de pernas para o ar, de ponta-cabeça, alterando-se em profundidade ou se invertendo simplesmente, e mais de uma vez.
Ou então, em outras emendas, acresceram-se conteúdos inéditos ao corpo constitucional, jamais imaginados pelo constituinte de 1.988, nem remotamente vislumbrados pelo cidadão e pelo profissional jurídico.
Como exemplo por excelência dessa autêntica balbúrdia constitucional temos o caso da Administração pública. As regras originais, dos arts. 37 a 41, foram mais de uma vez reviradas tal qual massa de pão na mesa enfarinhada, como nas Emendas nº 19/98, 20/98. 41/03, 47/05 e agora, muito recentemente, na EC 103/19.
Reforma administrativa e reformas previdenciárias
IV - A EC 103/19 foi a segunda reforma previdenciária, a primeira tendo sido deflagrada pelo conjunto das ECs 20, 41e 47. Hoje em dia ninguém mais reconhece as regras previdenciárias constitucionais que eram amplamente conhecidas desde 1.988, e mais: o que era diferente e quase oposto entre público e privado foi, na medida do viável, igualado pela EC 103/19, e para o futuro.
Quanto a reforma administrativa houve uma, assim chamada, em 1.998, dada pela EC 19. Agora se avizinha outra, mais ampla e pesada, que o Executivo ainda – fevereiro de 2.020 - hesita em remeter ao Congresso devido à ingente dificuldade em lidar com a matéria, que atinge em cheio os interesses dos muito poderosos servidores públicos.
Será remetida e sem dúvida aprovada, seguramente com modificações, mutilações, alterações variadas e adaptações de todo gênero – porque o dinheiro e a finança pública são uma realidade exata e inelástica, e o seu estoque ultimamente não tem permitido muita gracinha pelos dirigentes da nação, como permitia no passado. Tal qual, exatamente, ocorreu com a matéria previdenciária, na reforma que somente dará resultado sensível em algumas décadas.
Seja como for, em questão de Administração pública já estamos mais ou menos na terceira ou na quarta Constituição Federal... e quem conhecia o texto original a cada nova versão precisa recomeçar seu estudo e sua dedicação à matéria do zero.
Direito autônomo pendurado na Constituição
V – Nossa Constituição-jabuticaba – deliciosa fruta que leva a fama de somente existir no Brasil – tem outras características de fazer cair o queixo, ou de morder a nuca: emendas com direito autônomo, independente da matéria da Constituição... Um direito pendurado na Constituição, vindo ao mundo por emenda constitucional e portanto dotado de status constitucional mas que... não faz parte da Constituição !...
A EC 47, de 5 de maio de 2.005, nos arts. 2º a 4º, contém matéria suficiente só em si para investir alguém em direitos que não constam da Constituição nem de lei alguma. O servidor público, dentre as várias possibilidades jurídicas que tem para se aposentar com provento integral, pode escolher o do art. 3º da EC 47 – e acabou.
Ele não se aposenta, nesse caso, não pela Constituição, artigo tal, com a redação que lhe deu a emenda tal, como seria de esperar e como sempre foi a regra do direito brasileiro.
Ele se aposenta pelo art. 3º da Emenda Constitucional nº 47/05, que apesar de se intitular emenda não emendou cosa nenhuma da Constituição porque já indicou todos os requisitos exigidos para a aposentação integral, com Constituição, sem Constituição ou apesar da Constituição...
Contém direito autônomo, independente, autossuficiente para começar e encerrar o assunto, diga o que disser a Constituição !..
Faz lembrar o ditadorzinho mambembe e mequetrefe que governou o país em décadas anteriores e de quem se diz que costumava responder a quem lhe recordava que a lei não lhe permitia isso ou aquilo: - a lei, ora, a lei !... Neste caso, a Constituição, ora, a Constituição...
Abençoado país o nosso. Se não existisse o folclore das nações se ressentiria fortemente.
Detalhismo, insignificâncias e inutilidades
VI – Eis algumas características de nossa Constituição:
- é extremamente analítica, detalhista, minuciosa, e contém matéria própria de leis, decretos ou diplomas ainda inferiores. Quando a matéria é para leis, então foi apenas má técnica do constituinte incluí-la na Carta, mas quando esta invade terrenos de regulamentos torna-se absolutamente inadmissível.
Uma Constituição não pode rebaixar-se até o nível de conter matéria adequada para um regulamento, porque sua solene dignidade então se igualará à dos decretos e das normações infralegais, que, por respeitáveis e necessários que sejam dentro do seu plano e do seu nível institucional, em face da sua matéria não podem ocupar espaço da Constituição.
Como exemplos clássicos de insignificâncias guindadas ao nível da Constituição temos o § 2º do art. 242, que manteve o Colégio Pedro II na órbita federal. Uma Constituição se prestando a isso ? Bastaria uma portaria de ministro, se tanto, e a questão estaria resolvida.
E o § 1º daquele artigo não ficou distante, ao determinar que o ensino de história levará em conta as contribuições das diferentes culturas formadoras do povo brasileiro – como se se não o dissesse pudesse ser diferente o ensino da história. Os professores acaso omitiriam a cultura indígena, a negra, a influência dos orientais e a dos europeus que contribuíram para – mais ou menos metade de - nossa formação ?
Outro dispositivo simplesmente esotérico do texto constitucional originário foi o § 3º do art. 192, que limitava os juros reais nas operações de crédito a 12% ao ano. Essa indigência material dentro da Constituição - , que de resto, boa ou ruim nunca foi obedecida - foi extirpada do texto constitucional pela EC 40, de 29 de maio de 2.003.
São exemplos clássicos de até onde uma Constituição pode ser ridícula, mas existem muitíssimos outros, menos alardeados, alguns do quais a merecer menção.
O inc. XLIX do art. 5º garantiu aos presos respeito à integridade física e moral. Pergunta-se: antes da Constituição os presos podiam ser livremente abusados física e moralmente ? Leis não havia que os protegiam ?
O inc. VI do art. 7º garantiu ao trabalhador brasileiro irredutibilidade de salário. Pergunta-se: a lei trabalhista já não lha assegurava, desde a década de 40 ? Algum empregador por acaso reduzia o salário de seus empregados ?
Tal quadro de rebarbativas inutilidades lembra a jocosa figura da pedra na sopa, com a qual ou sem a qual a sopa é rigorosamente a mesma. Ou então o sempre citado episódio que se atribui ao Barão de Itararé no submeter-se a exame para obter carteira de motorista no Rio de Janeiro, na primeira metade do século passado, e que assim respondeu a pergunta do examinador, sobre se se sentia preparado para dirigir: - mais ou menos, disse o Barão. Vim guiando de Recife.
Direitos sociais
VIII - O mesmo se diga dos incisos do art. 7º, relativo aos direitos sociais do brasileiro, os quais “garantiram” aos trabalhadores o que a lei já lhes dava e lhes garantia havia décadas, como o fundo de garantia (inc. III), o seguro-desemprego (inc. II) ou, pasme-se, a garantia de salário (inc. VII).
Talvez, quanto a esse último, o constituinte se tenha olvidado de que um século antes, em 1.888, a escravidão fora abolida no país. Será que o nosso nacional precisa de uma Constituição que assegure o salário do trabalhador ?.. É uma Carta que chove no molhado, e que, quanto a esses pontos, mesmo que nunca tivesse sido promulgada em nada o direito então vigente teria sido alterado.
Existia uma ideia, muito apregoada à ocasião da promulgação, de que o país não costuma obedecer as leis, de modo que uma Constituição tem maior poder de assegurar o que a lei tenta assegurar mas não é respeitada. E mais se dizia: é mais difícil alterar a Constituição do que a lei; então, se os direitos constarem diretamente do texto constitucional será mais difícil aboli-los do que se apenas constarem de leis.
Tudo conversa mole para boi dormir, ou parolagem flácida para dormitar bovino: quem não se dispõe a cumprir a regra não se preocupa em saber se ela consta da Constituição, de lei complementar, de lei ordinária, de decreto, de portaria de ministro, de instrução normativa, de telegrama de chefe de seção ou de bilhetinho do Prefeito. Simplesmente não se abalança a respeitar o ordenamento, a regra, a norma, a ordem, o regulamento ou a determinação pertinente e competente. Pouco se lhe dá.
Uma Constituição que se altera 111 vezes em trinta anos, com todo respeito e sem qualquer laivo nenhum de subversão ou incitação à desobediência, ainda está valendo ?...
As pessoas detratavam e achincalhavam a Constituição de 1.969 (EC 1/69) porque, sendo ela própria uma emenda, sofreu 26 emendas em 19 anos de vigor. E esta agora, com 111 emendas em 31 anos e alguns milhares de PECs no estaleiro, que epíteto merecerá ?
Eficácia extremamente contida. Normas programáticas
IX – Outra característica da Carta é a de que exigiu mais de 350 leis que implementassem os seus comandos – como se a própria Constituição, no que tem de autoexecutável, já não tivesse invadido escandalosamente o escopo das leis e dos regulamentos. E daquelas leis, consta que atualmente pouco mais de 100 ainda precisam ser editadas, as demais já o tendo sido.
Observa-se então que, por mais detalhada e invasiva de alçada menor que tenha sido nossa Constituição – que remeteu quase tudo que instituiu à forma da lei -, decorridos 31 anos da sua promulgação, ainda não se “realizou” por inteiro, porque entregou a sua eficácia a centenas de leis das quais apenas dois terços foram produzidos. A eficácia da Carta, muitíssimo contida desde o início e paulatinamente implementada, ainda depende de um terço das leis anunciadas e exigidas no seu corpo.
Dificilmente alguém imaginaria, há vinte anos, que veria publicadas todas aquelas necessárias leis. porém hoje em dia, falando-se de tudo no país menos na troca da Constituição, talvez o dia que fora improvável chegue aos brasileiros que sobrevivam por uma década.
A Carta entretanto, ao lado de incontáveis disposições programáticas e que dependem de leis e outros atos para aperfeiçoarem seu comando, contém outros muitos dispositivos de eficácia plena já no nascedouro, os quais independem de quaisquer disciplinamentos para produzirem todos os efeitos colimados no texto.
Quando, por exemplo, a Carta fixa no art. 101 a composição do Supremo Tribunal Federal, então nada mais se lhe exige para que imediatamente se imponha o cumprimento dessa ordem. Quando, nos arts. 22 a 24, divide as competências legislativas (privativas, comuns e concorrentes) entre os entes federados, nenhuma outra norma infralegal é precisa para que a ordem valha imediata e absolutamente.
Nada errado até aqui, vez que os diplomas jurídicos contêm quase sempre dispositivos de eficácia plena ao lado de outros de eficácia contida até algum fato exigido no texto; o que se combate por excessivo é a imensa quantidade de dispositivos de eficácia contida, dependentes de leis constitucionais.
A Carta constitucional se converte, então, num gigantesco programa de nacionalidade, sempre à espera de implementação. Em nosso caso, como parece claro ao andar da carruagem, esta Constituição deverá consumir mais de quarenta anos para se impor como norma mandamental plena.
Assistematicidade
X – Como organismo vivo – aliás aparentemente hiperativo - a Constituição vira e revira sem cessar ao sabor da injunção política, da moda institucional do momento, da tendência social, das vocações da economia, dos ventos e dos furacões que movem os mercados internos e externos, das demagogias eleitoreiras, das ideologias governamentais que se alternam e se invertem, das necessidades reais e imaginárias da população, de um sem-número de outros fatores, valores e vetores.
Com isso a já pouca sistematização que se poderia esperar do texto se esvai por completo, esboroando-se pelo vão dos dedos sem permitir conclusão alguma ao aturdido espectador, o mesmo cidadão o qual a Carta se predispôs a servir. Fica bastante difícil esperar sistematização em um texto que muda 111 vezes em 31 anos, muita vez radicalmente.
Prevalência de alguns artigos. Cláusulas pétreas
XI – Ainda que seja composta de artigos que teoricamente teriam a mesma relevância ou a mesma dignidade jurídica e institucional, a verdade entretanto passa bem distante disso: a Constituição tem dispositivos mais importantes e dispositivos menos importantes, como uma criança pode se dar conta.
De fato, como comparar a monumentalidade de um art. 1º, e de um art. 2º, que dão os fundamentos da república, com a miseriinha do § 2º, art. 242, que declara que um colégio continua sendo federal ?
Como comparar o art. 7º, que elenca os direitos sociais do brasileiro, com a indigência mental que constava do art. 192, a limitar os juros no crédito ?
Ou seja, matéria que mal exigiria um decreto consta da Constituição, que a tudo quis abarcar sob alegação de proteger as instituições. Péssima idéia, tão ruim quanto a de, em décadas passadas, pretender homenagear vultos da história através de imprimir seu retrato em cédulas de dinheiro. No mês seguinte a moeda perdia quase todo o seu valor pela inflação, ou a unidade monetária passava a ser outra. E o homenageado ia junto...
Mas existe um fato mais decisivo quanto a desigualdade essencial de relevância entre dispositivos da mesma Constituição: o Supremo Tribunal Federal em julgamentos como na ADI 2.356 MC e na ADI 2.362 MC, relator min. Ayres Britto, (j. 25-11-2010, P, DJE de 19-5-2011.), assim se pronunciou:
A eficácia das regras jurídicas produzidas pelo poder constituinte (redundantemente chamado de "originário") não está sujeita a nenhuma limitação normativa, seja de ordem material, seja formal, porque provém do exercício de um poder de fato ou suprapositivo. Já as normas produzidas pelo poder reformador, essas têm sua validez e eficácia condicionadas à legitimação que recebam da ordem constitucional. Daí a necessária obediência das emendas constitucionais às chamadas cláusulas pétreas. O destaque é nosso).
O sodalício chamou a atenção para as cláusulas pétreas da Constituição, algo como um núcleo duro do texto basilar, propositadamente posto a salvo de peraltagens, molequices, demagogias ou politicagens por parte de quem tem o poder de alterar a Constituição.
Trata-se do art. 60, § 4º, que reserva certas matérias para que apenas uma nova Constituição as possa alterar, suprimir ou prejudicar; emenda constitucional não tem esse poder. Tais matérias são (I) a forma federativa do Estado; (II) o voto direto, secreto, universal e periódico; (III) a separação dos Poderes, e (IV) os direitos e as garantias individuais ([1]).
Pouco há a dizer dos três primeiros assuntos, já que em sã consciência torna-se difícil imaginar que alguém propusesse aboli-los; mas quanto ao último, direitos e garantias individuais, a proteção é elogiável, e demonstra, logo de início, que aqueles direitos e aquelas garantias do cidadão são mais importantes, na visão do constituinte – nem sempre repetida pelos Tribunais... – que os próprios direitos sociais do trabalhador, constantes do art. 7º da Carta.
De outra forma, se assim não fosse também os direitos sociais, do art. 7º, estariam protegidos de emendas já originariamente na Constituição e sem depender de decisões judiciais posteriores, tanto quanto os direitos e as garantias individuais, do art. 5º ([2]).
Parece que os direitos do art. 7º não são cláusulas pétreas, porque já foram alterados por emendas constitucionais, e inclusive suprimidos dois deles, das als. a e b do inc. XXIX, sem qualquer conseqüência posterior.
Então, a esta altura se observa que certos dispositivos da Carta têm proteção na própria Carta, enquanto outros a ganharam apenas nos tribunais, todos ao lado da imensa maioria que não tem proteção nenhuma de alteração por emendas a qualquer momento.
A Constituição é portanto um jardim variadíssimo, e apresenta toda a pletora de espécies e de gêneros jurídicos admissíveis num estado democrático de direito, cada qual a merecer atenção específica, e teorização própria e particular.
Uma impressão final
XII – À guisa de apanhado ou de precária conclusão do que até aqui se verificou, pode-se observar que imensas dificuldades, inéditas e muita vez insólitas, cercam hoje em dia o trabalho do constitucionalista.
Esse profissional jurídico precisa a cada curto período verificar como anda, em que pé está, sua ferramenta de trabalho, como quem verifica o cardápio ou a ordem do dia. Um constitucionalista consciente hoje em dia tem um pouco de vergonha da área em que milita.
Augura-se que ao menos os constitucionalistas brasileiros ainda saibam o que é a nossa Constituição, esse mastodôntico e indecifrável periódico que parece tudo a um só tempo, e com tanto não recorda nada conhecido em direito. Mas ter certeza de qualquer coisa desta disforme, desfigurada, descaracterizada e transtornada Constituição é trabalho para um mago.
Com todo efeito, já estamos na terceira ou na quarta Constituição de 1.988.
As sucessivas revoluções ensejadas pelas 111 emendas até este março de 2.020 são tão abrangentes que, após a eclosão de algumas, pouca memória resta das regras originárias, aquelas mesmas que foram tão festejadas na origem mas que a partir de 2.002 nunca cessaram de se inverter.
Nossa Carta evoca a imagem da nau sem rumo; o nacional acusa uma espécie de desorientação espacial, qual alguns infelizes pilotos que de um para ouro momento não mais identificam o espaço que os cerca.
Com tudo isso, não foi ainda desta vez que o país se afirmou constitucionalmente, nem que se deu conta do que, enfim, significa uma Constituição nacional, litúrgica, solene e majestática, uma curta e grossa carta de princípios e não um manual de regrinhas procedimentais de muito pouca envergadura, que não podem figurar em terreno sagrado.
[1] Na Carta de 1.969 o dispositivo equivalente, o § 1º do art. 47, era menos pretensioso, e excluía apenas as emendas tendentes a abolir a federação ou a república.
[2] E a discussão doutrinária e mesmo a jurisprudencial sobre o tema não tem fim. Alguns juristas, e alguns juízes, entendem que os direitos sociais do art. 7º são cláusulas pétreas constitucionais, enquanto outros somente admitem que o sejam os direitos e as garantias individuais.